- Mario Donato D’Angelo
Há lembranças que nos vestem como um terno antigo.
Não desses prontos de loja, impessoais e apressados, mas um feito sob medida: prova paciente, fita métrica no pescoço do alfaiate, alfinetes discretos segurando o tecido escolhido a dedo.
Memórias bem costuradas são assim: acompanham o ombro, respeitam a curva da saudade, deixam espaço para o coração se movimentar sem apertos desnecessários.
Outro dia me peguei pensando que certas crônicas também são assim: ternos literários.
São feitas no alfaiate da lembrança, onde as palavras seguem a linha do tempo de cada um de nós, respeitam os vincos da infância, não apertam onde dói nem sobram nos cantos onde a emoção se esconde.
Minha infância, por exemplo, tinha cheiro de lã guardada e silêncio de sala de hotel, onde viajantes, se entreolhavam.
O tempo parecia andar descalço pelos corredores, arrastando passos leves entre os sons abafados de gente cochilando.
O tédio tinha uma elegância singular: vestia paletó de flanela, sapato bem engraxado, e se sentava no sofá com os olhos perdidos no ventilador de teto, girando sem pressa o ar que resistia a se mover.
Recordo-me da primeira vez em que fui ao alfaiate com meu pai. Era como visitar um templo. Ele media sem pressa, falava pouco, anotava tudo com um lápis que descansava atrás da orelha, como se fosse um ofício sagrado. E, quando parecia tudo pronto, rasgou de repente a manga recém
costurada, num gesto brusco e teatral, como quem se decepciona com a própria obra:
O menino ainda vai crescer, melhor deixar folga, disse:
Mal sabia ele que o tempo também cresceria dentro de mim, e que um dia eu vestiria, com um certo aperto no peito, o paletó das lembranças.
Hoje, quando escrevo, tento fazer isso: uma literatura que caiba. Que sirva sem apertar.
Que tenha bolsos fundos para guardar histórias e forro macio para proteger as palavras mais íntimas.
Escrever uma crônica é como escolher um tecido: há dias que pedem algodão leve, quase transparente. Outros exigem tweed, lã grossa contra o vento da tristeza.
Existem palavras que só combinam com linho claro; outras pedem risca de giz, colete e gravata borboleta.
O leitor talvez nem perceba, mas quando veste, sente.
Sente que aquilo foi feito para ele, ou melhor, para nós, os que ainda somos meninos dos tempos antigos.
E, como toda roupa bem feita, a crônica sob medida dura mais, atravessa os anos, muda de corpo, de geração, mas mantém o corte.
Mesmo quando vira peça de brechó sentimental, carrega nos ombros os gestos de quem a usou pela primeira vez.
Há quem prefira a literatura como desfile: palavras rápidas, frases ousadas, um certo exibicionismo elegante. Eu não!
Prefiro a prosa com bainha invisível, a costura interna das emoções, o botão reforçado com linha dupla.
Gosto das histórias moldadas no corpo da memória, provadas diante do espelho do tempo, com o olhar demorado de quem pergunta: Isso me representa? Isso me acompanha?
Se crônica fosse roupa, talvez fosse isso: um terno antigo, feito por mãos pacientes, com pano que já não se encontra mais, e que, quando a gente veste, dá a estranha impressão de que nós é que estamos costurados nele.
Pois isso, é o que resta: um alfaiate, que nos veste com tecidos que só o coração sabe costurar...
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