Ataualpa A. P. Filho - professor
Agradeço ao tempo por ter me ensinado a valorizar as insignificâncias. O tempo mostra os verdadeiros valores da existência: Saúde, Paz e Bem...
Agradeço à Literatura o gosto por “inutensílios” tão presentes na poesia de Manoel de Barros. As coisas desimportantes podem preencher os espaços vazios das regras doutrinárias.
Cansa ver o mesmo pelo mesmo, do mesmo modo para fazer tudo da mesma forma, na mesma fôrma para que tudo fique do mesmo jeito. Os paradigmas, os algoritmos consagrados pelas repetições são responsáveis por uma monotonia que, quando desestabilizada, desencadeia insegurança.
A vida de ninguém é descaroçada. O frio não vai se adaptar ao nosso cobertor. Tenho medo de perder as minhas inseguranças e as minhas inquietudes. Carrego raízes crianceiras para não me perder no loop infinito. Que a vida dá voltas, todos sabem. Mas o medo aflora quando tudo fica de cabeça para baixo. E, quando tudo parece estar de cabeça para baixo é que temos que apreender a olhar para o alto. Quem está na terceira idade que procure encontrar a terceira infância para não perder o lúdico e ter mais cuidado com as quedas.
A motivação para escrever este texto veio por meio de uma criança que primaverou a minha semana. Apesar de tantos laudos que tentam diagnosticar a sua hiperatividade, nenhum deles, exalta a beleza da ingenuidade que ele apresenta, nem expõe o sorriso sincero quando é despertado por algo lúdico.
A constante busca por ludicidade pelas crianças com laudo de hiperatividade nem sempre encontra a compreensão dos adultos. Em muitos casos, eles não entendem o “não” como limite, mas como proibição. Compreendê-las no mundo em que vivem é e sempre será um desafio.
Na segunda-feira, uma mãe levou o filho para a escola. Geralmente ela traz a avó da criança para ajudá-la a cuidar dele. Apesar dos seus quatro aninhos, é bastante forte e tem uma linguagem bem definida, expressa bem o que deseja.
Quando ele está na escola, geralmente, paro o que estou fazendo para dar-lhe uma atenção. Mas na segunda-feira, isso não foi possível. Estava bastante atarefado. Dei a ele uma caneta e uma folha de papel para que desenhasse.
Minutos depois, ele voltou com a folha de papel e a caneta:
Desenha um saci...
Como eu iria explicar a ele que sou péssimo em desenho?!... Desenhei um boneco com uma perna só.
Legal! Não sei como ele conseguiu enxergar o saci no desenho que fiz. Mas, como ele gostou, dei a missão como cumprida.
Agora, tem que desenhar uma armadilha...
Mais uma vez o “como” veio desafiar-me. Não tinha a menor ideia de como desenhar uma armadilha. Fiz alguns rabiscos cruzados e apelei para o faz de conta:
Aqui é uma grade que serve de armadilha!...
Legal!
Agora tem que desenhar o vento...
Mais uma vez o “como” saltou: como desenhar o vento?...
Não havia tempo para pensar. Fiz vários riscos aleatórios com direito a sonoplastia: à medida que riscava, passei a emitir um som como se fosse o barulho do vento:
Ruuuuuu! Ruuuuuu! Ruuuuuu!...
Legal!
Agora tem que pegar o saci na armadilha. Ele vem no vento. E a gente tem que pegar ele na armadilha...
Colocar o saci na armadilha estava além dos meus dotes artísticos. Extrapolou a minha competência na arte de desenhar.
Ele tá fugindo! O saci é esperto! Tá correndo muito! Não estamos conseguindo pegar! Vamos procurar por aqui. Talvez ele esteja escondido aqui...
Andamos pelas salas, olhei atrás da porta. A avó viu o meu sem jeito, apareceu e me salvou.
Ela, na adolescência, foi minha aluna. A filha dela é minha aluna. Hoje o netinho dela me ensina a entrar na terceira infância. Colocá-lo no colo não é a melhor estratégia. Desce rápido e ele é bem robusto, bastante forte. Tem uma facilidade de expressar o que sente. Não dissimula. O desejo é imperativo, quer rápido.
Louvo o trabalho da mãe e da avó, pois é uma vigilância constante. O pai da criança também estuda em nossa escola. A mobilização da família é imprescindível, uma vez que o carinho é indispensável em todas as etapas da infância.
O tempo já me disse que estou na terceira idade. Agora estou fazendo um curso para ingressar na terceira infância. Estou aprendendo a despraticar normas e a dar mais atenção às situações amoráveis, mesmo que sejam consideradas insignificantes.
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