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sábado, 19 de julho de 2025


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A missa, a matinê e o almoço de domingo

- Mario Donato

Foto: Pixabay
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Nos domingos de antigamente, Petrópolis acordava com badalos de sino. Às oito em ponto, a Catedral de São Pedro de Alcântara enchia-se de gente. Gente elegante, perfumada, com paletó domingueiro e sapatos engraxados. Mas nós, meninos de dez ou onze anos, não íamos à missa por fé, ou íamos, mas por outra fé: a fé nas meninas.

Meninas que não sabiam que tinham sido eleitas nossas namoradas. Observávamos de longe, entre os vitrais e o incenso, aquelas criaturas celestiais que usavam vestidos bem passados e meias brancas, e que pareciam pairar no chão de pedra fria. Não ousávamos falar com elas, claro. Era um amor de olhar, um namoro de silêncio, uma devoção sem palavras.

A missa terminava e, como num corte de cinema, começava o segundo ato: a matinê das dez e meia no Cinema Petrópolis.

Petrópolis tinha três cinemas importantes: o Dom Pedro, que era do meu avô; o Capitólio, mais ao fim da Avenida 15 de Novembro; e o Cinema Petrópolis, o mais elegante dos três, bem no coração da cidade. Era pra lá que íamos, em bando, como quem vai para um rito secreto. As distâncias que hoje me parecem curtas, na época pareciam travessias. Ir da Catedral ao cinema era quase como mudar de mundo.

Havia, porém, um privilégio que me enchia de um orgulho silencioso: por sermos da família D’Angelo, e porque os cinemas estavam arrendados à Companhia Severiano Ribeiro, bastava dizer ao porteiro o sobrenome, D’Angelo e a mágica se fazia. Era como pronunciar uma senha encantada. As portas se abriam, os olhos se abaixavam respeitosamente, e entrávamos sem pagar ingresso. Curiosamente, ninguém abusava disso. Era um pacto discreto, quase cerimonial. Às vezes, quando ia com um amigo, eu dizia: “Ele está comigo.” E o amigo também passava. Mas mesmo nesse gesto havia uma contenção, um senso de honra infantil. A cortesia era um tesouro que sabíamos guardar.

Mas havia também uma barreira temida: o gerente. Seu Benjamin. Um verdadeiro sargento do cinema. Carrancudo, olhar de inspetor escolar, ele exigia ver nossas carteiras de estudante, que, quase sempre, traziam a idade discretamente alterada com uma caneta Bic. Ele examinava o documento com desconfiança, apertava os olhos e, com a voz embargada de autoridade, disparava:

Essa carteira aqui não vale, menino. Fora da fila!

Era o nosso vilão. Mas como em todo bom filme, havia também um herói: o porteiro. Assim que seu Benjamin saía de cena, ele piscava discretamente e deixava a gente passar. A magia da matinê estava salva. Entrávamos às pressas, como fugitivos resgatados pela bondade de um cúmplice. Agora, o problema era driblar o lanterninha, que tinha a difícil tarefa de nos manter bem comportados...

Quase sempre os filmes eram leves: comédias, musicais, aventuras em technicolor. A tela era um clarão de outra realidade. John Wayne cavalgava pelo Arizona. Doris Day cantava com sorriso imaculado. Os besouros do deserto brilhavam como joias sob o sol de celuloide. O technicolor era uma promessa de mundo mais vivo que o nosso.

A sessão começava com trailers e, desenhos animados. Depois vinha o longa. Ríamos, suspirávamos, aprendíamos um pouco do mundo. Era ali que, sem saber, começávamos a entender a linguagem dos gestos, dos olhares, dos silêncios carregados de sentido. Saíamos do cinema iluminados por uma luz diferente, uma luz que não vinha do sol.

Do lado de fora, a rua nos devolvia à realidade. Ainda meio encantados, trocávamos palavras tímidas. Comentávamos o filme, ou nem isso, apenas trocávamos olhares cúmplices. Éramos meninos tentando decifrar o mundo e as meninas, ao mesmo tempo.

Mas o encantamento tinha prazo. Logo chegava a hora do terceiro ato: o almoço de domingo em família.

Ah, os almoços de domingo. Longos, formais, cheios de rituais: toalhas bordadas, pratos fundos, talheres alinhados. Os adultos falavam sobre política, sobre o tempo, sobre parentes que não víamos fazia anos. E nós ali, esperando a sobremesa, espremendo os minutos para escapar e voltar à rua. À liberdade do pátio. Ao barulho de bola. Às primeiras paixões ainda sem nome.

Hoje penso que aquele ciclo, missa, matinê, almoço, era a liturgia dos nossos domingos. E talvez, sem perceber, estivéssemos aprendendo ali os rituais da vida: observar, sonhar, suportar. Amar em silêncio. Esperar em segredo. Saber a hora de voltar.

Petrópolis era pequena, mas parecia um mundo. A cidade cabia nos nossos olhos de menino. E os cinemas, com seus cartazes coloridos e bilheteiros fardados, eram como portais encantados. A matinê não era apenas um filme: era um respiro. Um intervalo. Um lampejo de liberdade entre a disciplina da missa e o protocolo do almoço.

E talvez, só talvez, ainda sejamos, todos nós, um pouco aqueles meninos que se apaixonavam sem serem notados. Que sorriam escondido num banco da igreja. Que esperavam a hora certa de entrar no escuro do cinema para sonhar mais alto.

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