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sábado, 24 de maio de 2025


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A rua, a bola e o tempo

Mario Donato D’Angelo médico e pesquisador - @mariodonato.dr

Foto: Divulgação
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“O importante não é vencer, e sim competir com dignidade.”
Frase do Barão de Coubertin.

Mas quem era esse Barão?

Na minha infância, ninguém sabia. Nem eu, nem meus amigos, nem os primos metidos que jogavam bola até descalços no paralelepípedo, como se fossem jogadores da seleção. Ainda assim, mesmo sem conhecer a tal frase, a gente vivia esse princípio na pele, ou melhor, nos joelhos ralados.

A pelada, esse nosso futebol de rua, acontecia na Rua Nilo Peçanha, em Petrópolis, ali perto do hotel onde eu morava com minha avó. Era uma tradição quase sagrada, como missa de domingo, só que com mais palavrão. A rua virava estádio. As traves eram duas pedras, ou duas latas de óleo. E se a bola passasse muito alta, começava o debate.

Era uma democracia ruidosa. Um acordo coletivo, confuso e barulhento, mas um acordo. E ninguém saía no tapa, ou quase ninguém. Às vezes saía, mas também era parte do jogo.

Quando o jogo começava a pender demais pra um lado, a gente nem deixava virar goleada: desmontava os times, ria e recomeçava tudo. “Vamos bater par ou ímpar de novo!” Porque o que valia mesmo era o jogo, não a vitória. E isso a gente sabia por instinto, nunca lemos nada sobre ética esportiva, mas já carregávamos na pele a regra mais nobre: se não for divertido, não vale o placar.

Ali na pelada da rua, não era só a molecada jogando bola, não. Formava-se uma plateia improvisada, um público variado de desocupados da tarde, adultos sem pressa, vagabundos filosóficos, gente matando trabalho ou apenas matando o tempo. Ficavam ali, de braços cruzados, uma perna na frente da outra, como se estivessem na varanda da própria existência.

Assistiam à nossa pelada com olhos de comentarista esportivo e coração de menino velho. Davam palpite, riam alto das nossas trapalhadas e, volta e meia, quando o jogo pendia demais pra um lado, a gente chamava um deles pra completar o time. Entravam de chinelo ou descalços, com aquela autoridade mansa de quem já tinha jogado muito e agora jogava só por lembrança, ou por saudade do corpo que um dia correu sem pensar.

Mas tinha dias em que o riso ficava mais quieto. Eles olhavam o jogo com um certo atraso no olhar, como se estivessem assistindo à própria infância passando de novo, só que do lado de fora. E, mesmo que a bola fosse nossa, o jogo, no fundo, era deles também. Era a última chance de driblar o cansaço, de fazer um gol contra o silêncio que vinha com a idade. Cada chute deles era também um pedido mudo: deixa eu ficar mais um pouco nesse campo onde o tempo ainda não apitou o fim.

A gente não percebia isso na hora, claro. Pra nós, era só mais uma tarde, mais um jogo com camisa ou sem camisa, mais um pé ralado, mais uma garrafa de água dividida no meio-fio. Aquelas peladas tinham mais história do que qualquer estádio. E aquela plateia de rua, meio torcida, meio elenco de apoio, era o nosso futuro olhando pra trás, espiando a infância, querendo jogar mais um tempo.

E, quando o jogo acabava e saíamos juntos, sorrindo, ninguém mais lembrava o placar. Lembravam, sim, dos tombos, das gargalhadas, do grito de “foi mão!”, da bola que caiu no telhado do seu Nestor, que odiava crianças, futebol e felicidade.

Então, no caminho de volta, era simplesmente um brinde às amizades, aos apelidos e ao suor infantil que cheirava a liberdade.

Hoje vejo que, sem saber, encarnávamos Coubertin com mais pureza que muito comitê olímpico. Jogávamos por jogar. E ali, naquelas tardes de sol torto e chinelos voando, aprendíamos o que nenhum adulto conseguia ensinar direito: que a vida não é sobre ganhar, mas sobre estar junto. E que até ser ruim de bola tem seu lugar na festa, desde que você tope rir de si mesmo e continuar jogando

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