Ataualpa A. P. Filho - Professor
Antes de tudo, quero lhe dizer que pairou aqui uma dúvida em relação ao título deste texto. A princípio, intuitivamente, escrevi “a loucura da verdade”. Mas, depois de ver o escrito, pensei: não é bem isso que pretendo narrar. Levei um certo tempo para desatar esse nó, porque não se trata de um simples jogo de palavra. “A verdade da loucura” e “a loucura da verdade” carregam significações distintas. Não se trata de “trocar seis por meia dúzia”.
Ainda ando por esta estrada contando os passos para não perder o caminho de volta. Sei que isso é “trauma de infância”. Mas lhe confesso, já está superado. Ouvi muito: “esse menino vai ficar doido de tanto estudar”. É bom contrariar os profetas da inércia. Naquela época não tinha celular, nem internet. Televisão, telefone não eram para todos. Lamparina, lampião davam luz no meio da noite... O sertão ensina com o calor da verdade. É sempre bom saber o valor de uma gota d’água.
A história humana está repleta de pessoas que foram consideradas “loucas”, mas carregavam consigo verdades que foram expostas nas ciências e nas artes. Michel Foucault, no livro “História da Loucura”, já afirmara que “o louco não é manifesto em seu ser: mas se ele é indubitável, é porque é outro.”
O “outro”, por ser diferente do que é considerado “normal”, nem sempre é ouvido. E o que fala é tido como manifestação da “loucura”. Hoje a expressão “fora da casinha” tem sido muito ventilada para rotular as pessoas que fogem dos parâmetros convencionais.
Na carta aos médicos-chefes dos manicômios, o dramaturgo Antonin Artaud escreveu: “Os loucos são as vítimas individuais por excelência da ditadura social”. E, em um hospício, Lima Barreto falou: “de mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há seis anos me assoberbam de quando em quando dou sinais de loucura: deliro.”
Por ter uma afinidade com a loucura, sempre fico com o ouvido aberto para tentar captar o que as pessoas tidas como “fora da casinha” falam aleatoriamente nas ruas. O que ouvi na quarta-feira que passou merece uma reflexão:
Estava em pé, na fila de um cartório, com uma cópia da minha certidão de casamento para receber um carimbo de autenticação e ser colocada em um processo em outro cartório. Paguei para ter um documento carimbado oficialmente, certificando-o que é mesmo do mesmo. Paciência! É o que reza a burocracia protocolar. Usam carimbos cansados para pendurar autenticidade.
Estava ali desprevenido, sem nenhum livro na mão, apenas carregava um envelope de papel pardo. Tenho agora três certidões de casamento guardadas. Burocraticamente já me pediram duas vezes para renová-la. Estou há 26 anos casado com a mesma esposa. Nunca imaginamos que teríamos que colecionar certidões.
E foi assim com o pensamento voando, que ouvi a voz forte de um senhor, em torno de uns cinquenta anos de idade, gritando:
Tem muito bandido-ladrão atrás da caneta! É bandido-ladrão, bandido-ladrão roubando atrás da caneta! E aí? Tem que tá preso. Quem prende? Quem prende tem que prender. É muita sujeira! Tem que limpar. Quem vai pegar todo arrumadim atrás da caneta? Com esses bandido-ladrão que tão aí, o país não vai pra frente, não. Tem que ficar atrás da grade...
Pela forma agressiva, pelo tom da voz, pelos palavrões que surgiam entre as frases que pronunciava, as verdades não recebiam as atenções devidas.
Em pé, na fila, atento ao que ele dizia, encontrei algumas verdades. Mas quem iria levar em consideração o que ele falava da forma como falava?
Como permanecer na “casinha” em uma sociedade tão desestruturada? O processo de exclusão é contínuo. Aprendi a respeitar a loucura pela verdade que ela expressa, pela lucidez da sincera alucinação diante da torturante realidade.
A “loucura da verdade” está na lucidez. A “Psicologia nunca poderá dizer a verdade sobre a loucura, pois é a loucura que detém a verdade da Psicologia”, já afirmara Foucault.
Parado na fila a esperar por um carimbo para autenticar o óbvio, pensei: se esse senhor fizesse um vídeo e colocasse nas redes sociais, viraria “meme”. Diante do volume das incoerências disseminadas na internet por pessoas consideradas “normais”; ele, certamente, teria vários seguidores. Contudo, por estar gritando, nas ruas, as suas verdades, é considerado louco. Outros, considerados “normais”, que postam insanidades nas redes sociais, são considerados influenciadores.
Veja também: