*Mario Donato D’Angelo médico e pesquisador
Chuchu tem gosto de quê, vó Deolinda?
Ela parou o que fazia, como quem ouve uma pergunta antiga, vinda de muito longe, talvez de antes da existência das palavras. Mexia uma panela sobre o fogão de ferro, o lenço florido amarrado no cabelo, a colher de pau dançando no caldo como se regesse uma sinfonia num tempo mais lento. Mas não respondeu de imediato.
O neto insistiu, sem saber que havia tropeçado num território delicado.
É que os avós, especialmente as avós, habitam uma dimensão à parte. Têm cheiros próprios, nomes próprios, um vocabulário inteiro de expressões que ninguém mais usa, e um jeito de existir que não se aprende, se herda. Chamar-se Deolinda, por exemplo, não é só ter um nome: é carregar um destino. Ninguém nasce Deolinda por acaso. É um nome que já vem com receita de doce de mamão verde e bênção na testa.
Dá pra imaginar que esses nomes antigos vinham embrulhados em papel pardo, nascidos já com cheiro de armário embutido e almofada de crochê. Erundina, Maricota, Eufrásia, Anunciada, Generosa. Nomes de mulheres que sabiam fazer sabão em barra e curar cobre com limão. Mulheres que bordavam pano de prato com ponto cheio e guardavam os guardanapos de linho dobrados em quatro, mesmo que ninguém mais os usasse.
Quem ousaria namorar uma Maricota? Agora, ter uma vó Maricota? Perfeito. Com xale e tudo.
Essas mulheres pareciam saber coisas que o mundo esqueceu. Como ferver lençol em caldeirão. Como rezar de joelhos sem parecer devota demais. Como fazer silêncio com dignidade.
Tem gosto de chuchu, ué
Respondeu enfim a vó Deolinda, com a obviedade de quem já viu o bastante pra não achar que tudo precise ter gosto de alguma coisa.
E foi nesse momento que surgiu uma intuição silenciosa: talvez o chuchu fosse o nome vegetal da avó. Macio, delicado, quase sem gosto próprio, mas capaz de absorver e realçar o sabor de tudo que o rodeia. E é assim que são as avós: temperam a vida dos outros. São o fundo da panela da família. O tempero que ninguém vê, mas sem o qual tudo parece mais raso.
E essa tranha aqui, vó, o que é?
Isso é batata-baroa, meu filho. Come que é bom pra crescer.
As pessoas mais velhas, especialmente as mulheres, tinham essa mania de oferecer o que fosse “bom pra crescer”: comida, conselho e nome de peso.
Deolinda também sabia o que fazia crescer. Não só em tamanho, mas em juízo. Tinha a crença antiga de que comida, afeto e bronca na hora certa são os três pilares do desenvolvimento humano. Com ela, tudo vinha junto: a receita e o ensinamento, às vezes no mesmo prato.
Hoje em dia, alguém poderia ter uma avó chamada Antonella? Provavelmente não. Antonella é nome de quem toma vinho em taça de cristal e tem Instagram. Dá status. Antonella é vó que usa perfume francês e diz "biscoito" com sotaque de Milão. A turma ia querer conhecê-la, claro...Mas avó de verdade precisa ser sólida. Precisa saber do tempo da bilha, da manteigueira, da linha de costura número 10. Precisa ter aquele gesto de passar a mão no cabelo da gente sem dizer nada, e ainda assim dizer tudo.
Deolinda não falava inglês, mas sabia identificar febre encostando a mão na testa. Sabia que tristeza se cura com chá de erva-cidreira e conversa demorada.
Deolinda já nasce avó, mesmo que demore décadas para ganhar neto.
Hoje os nomes são outros. Tudo é breve. Tudo é marketing. As crianças nascem com nomes de celebridade ou de personagem de série. A gente quer que brilhem. Mas nome de avó era feito pra durar. Como dura uma panela de ferro, um bordado bem feito, uma lembrança que volta quando a chuva cai no telhado.
Talvez seja coisa divina, um certo carimbo celeste. A mulher que recebe esses nomes já nasce na condição de avó. Não foram mães, nem filhas. Nasceram avós.
Talvez por isso a pergunta sobre o gosto do chuchu. Porque o chuchu, como a vó, carrega uma ternura difícil de explicar. É meio sem gosto, mas cheio de presença. É base. É fundo. E o fundo, no fim das contas, é o que sustenta a sopa inteira.
As avós são isso: o gosto que a gente não percebe, mas que faria falta se não estivesse ali. Como o silêncio da casa quando elas se vão. Como o cheiro de roupa lavada que parece ter sumido do mundo. Como o nome delas, que não volta mais no cartório, mas segue escrito em alguma parte da memória, com letra cursiva e papel almaço.
E se hoje alguém perguntar, haverá quem responda, com convicção tranquila:
Chuchu tem gosto de vó.
* Ps: Se você se interessar por esse conteúdo, te convido a me visitar no Instagram @mariodonato.dr
Veja também: