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As criaturas e os criadores

Foto: Freepik
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Ataualpa A. P. Filho - professor

Inicio a nossa prosa de hoje recorrendo, mais uma vez, à instância máxima da nossa Literatura, o mestre Machado de Assis, que, em 24/03/1873, na crônica intitulada A Língua fez a seguinte afirmativa: Feitas as exceções devidas, não se leem muito os clássicos no Brasil.

O tempo passou, criou asas, voou, encurtou distâncias. A comunicação ganhou velocidade, mas a resistência à leitura dos clássicos continua até os nossos dias. O que o Machado afirmara há séculos se constata até hoje. O escritor e humorista estadunidense, crítico do racismo, Samuel Langhorne Clemens (1835-1910), mais conhecido pelo pseudônimo Mark Tawain, autor de As Aventuras de Tom Sawyer, registrara a mesma constatação ao afirmar que um clássico é algo que todos queriam ter lido, mas ninguém quer ler.

Despertar o gosto pela leitura consiste em um processo que tem início na infância. Não depende exclusivamente dos professores de Língua Portuguesa e Literatura. O contato com o livro nasce no lar, a escola amplia-o. É possível exercer um procedimento didático com tal propósito para promover o desenvolvimento cognitivo da criança, do adolescente para assimilação do mundo por meio também dos livros. Posso afirmar com segurança: quem não leu um livro como O Menino Maluquinho do Ziraldo, terá dificuldade de ler Dom Quixote de La Mancha de Miguel de Cervantes.

Com a proliferação das informações pelas redes sociais, o processo reflexivo, as análises mais apuradas dos fatos diminuíram. O imediatismo que predomina em nossos dias tem se colocado como obstáculo no acesso aos clássicos. A busca pelos resumos dos livros cresceu bastante, pois é fácil encontrá-los na internet.  O enredo é apenas um dos elementos de uma narrativa. A cultura do consumo miojo chegou à Literatura: muitos querem algo rápido e fácil de ser digerido. Ouço sempre que textos longos cansam. O ato de não refletir sobre o que se lê é que tem contribuído muito para o aumento das falcatruas: quantas pessoas já foram ludibriadas por não terem lido, nem interpretado os documentos que assinaram?...

Na semana que passou, considerei preocupante o fato de um gestor público estadual cogitar a ideia de substituir professores por ferramenta de Inteligência Artificial como ChatGPT, na produção de aulas digitais. A proposta consiste em usar a Inteligência Artificial para criar conteúdo a partir de temas fornecidos pela Secretaria de Educação. Isso evidencia a cultura da doutrinação que se preocupa mais com o conteúdo a ser informado do que com a realidade de quem deve aprender. A vida não é artificial. O conteúdo sem vivência, sem passar pelos sentidos tem assimilação inócua. A fome desartificializa qualquer teoria. A miséria não é abstrata.

O educando não pode ser visto como um depósito de teorias. Paulo Freire já questionara essa educação bancária, que coloca o estudante em posição passiva sem interação no processo educacional. Esse mencionado educador, reconhecido internacionalmente, que vem recebendo severas críticas, no livro Educação como Prática da Liberdade, no capítulo A Sociedade Brasileira em Transição, afirmou: As relações que o homem trava no mundo com o mundo (pessoais, impessoais, corpóreas e incorpóreas) apresentam uma ordem tal de características que as distinguem totalmente dos puros contatos, típicos da outra esfera animal. Entendemos que, para o homem, o mundo é uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser conhecida. É fundamental, contudo, partirmos de que o homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo.

O mundo dos contatos é diferente do mundo das relações. No jogo de interesses econômicos, o outro é apenas um cliente, um consumidor. A caverna digital está nas raízes das síndromes do pânico.

A Literatura carrega consigo um espaço lúdico que permite libertar a alma pela arte em que as criaturas e os criadores se confundem em uma relação íntima agregadora, porque há interação pela ternura. Temos que admitir que uma personagem criada com perfeição salta da ficção para a realidade e passa a viver conosco descontraidamente. O Ziraldo partiu para outra dimensão da vida, mas o Menino Maluquinho continua conosco. Não me preocupo com a mediocridade, porque sei que o tempo apaga os sucessos efêmeros. O conceito de imortalidade é construído na tradução do viver. A Arte que questiona, que não se restringe à contemplação, cria, com seus próprios pés, o caminho para a eternidade, porque encontra espaço na memória do povo que a imortaliza.

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