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Academia Petropolitana de Letras

COLUNISTA

Academia Petropolitana de Letras

Quem tem medo de Lúcio Cardoso?

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Lúcio Cardoso (1912-1968) é daqueles escritores brasileiros ainda pouco conhecidos, infelizmente. Mineiro de Curvelo, nascido numa autêntica família tradicional daquele estado, religiosa e conservadora, fato este que seria um complicador em toda a sua vida: era homossexual e católico; como conciliar tal questão existencial?

Autor de uma obra realmente única e totalmente voltada para as questões filosóficas e existencialistas, embora tenha publicado ao longo do chamado Regionalismo de 30, não se enveredou pelas temáticas sociais próprias deste momento da nossa literatura. Ao contrário, sua obra romances, contos, teatro, cinema e diário foi inteiramente voltada para a análise do eu, do íntimo e do estar no mundo. Aliou-se a autores da mesma tendência criativa Octávio de Faria, Cornélio Penna, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes, Jorge de Lima, dentre outros.

A abem da verdade, Lúcio Cardoso sofreu incompreensões e até um certo silenciamento da crítica literária especializada de sua época. Poucos foram os críticos que, de fato, compreenderam a obra de Lúcio aquando de sua publicação, cito apenas dois: Álvaro Lins e Alceu Amoroso Lima. O primeiro, de uma tradição eurocêntrica de crítica literária, via em Lúcio Cardoso a continuação de certa literatura existencialista francesa, na esteira criativa de Georges Bernanos, Charles Péguy, Jacques Maritain, Paul Claudel, Julien Green, François Mauriac e tantos outros. Quanto a Alceu Amoroso Lima, este analisou a obra de Lúcio Cardoso na perspectiva religiosa católica. Desde o início de sua publicação, Alceu viu na obra de Lúcio um verdadeiro embate entre o eu e os valores religiosos ou então, como costumava afirmar, uma verdadeira luta de valores contrários: Deus X Diabo, céu X inferno, corpo X alma e tantas outras antíteses numa espécie de atualização do drama barroco.

Sua obra prima, Crônica da casa assassinada, foi publicada em 1959, poucos anos antes dos dois AVCs que o marcariam profundamente, levando-a à morte após anos de sofrimento. Sua Crônica, que abusou de gêneros como cartas, diários e memórias, é considerada por muitos críticos como o mais importante romance da nossa literatura. Nela, Lúcio criou um enredo em torno de uma família decadente do interior mineiro os Menezes que seriam metáfora e metonímia do Brasil atrasado e retrógrado. Uma personagem se destaca neste livro, Timóteo, que passa toda a história travestido, usando as roupas, jóias e objetos pessoais de sua mãe. Ele é dócil, afeminado e humano, certamente o de melhor caráter dentre seus irmãos: Naturalmente ainda conservava seu aspecto feminino, mas de há muito deixara de ser a grande dama, magnífica e soberana. Era um rebotalho humano, decrépito [...] e que já atingira esse grau extremo em que as semelhanças animais se sobrepõem às humanas.

Trata-se de uma espécie de vingança contra sua terra natal e o conservadorismo mineiro, conforme o próprio Lúcio vociferou, numa entrevista ao JB, em 25/11/1960: Meu movimento de luta, aquilo que busco destruir e incendiar pela visão de uma paisagem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja, é contra Minas Gerais. Lúcio materializou na cultura mineira todo o seu horror ao conservadorismo e ao moralismo próprios de uma época, e não rara foram as vezes que criticava e falava mal da sua terra natal. Por isso, em alguns dos seus romances, as personagens mais caricatas e mal resolvidas eram justamente os mineiros e suas tradições.

Na verdade, Lúcio Cardoso foi político sem ser partidário, sem levantar bandeiras identitárias tão comuns nos dias de hoje. Não se identificava com as ideologias comunistas, tão comuns e sempre defendidas pela maioria dos escritores brasileiros do seu tempo. Inclusive, despertou a aversão destes, foi isolado dentro do seu pequeno grupo de resistência, como costumava dizer. Foi ignorado por muitas editoras que o acusavam de reacionário e ultrapassado e ainda pior: que não vendia bem, que dava prejuízos editoriais etc. Por isso, sempre que podia, criticava as editoras comerciais com aspereza e amargor, acusando estas de serem deveras capitalistas e mercenárias em relação a dinheiro e vendas de livros.

Sempre que podia, Lúcio Cardoso vinha a Petrópolis e se hospedava no imóvel que hoje conhecemos como Casa da Educação Visconde de Mauá. Por que ali? Porque aquele imóvel pertencia à família do também escritor Octávio de Faria, seu grande amigo e companheiro das letras existencialistas.

Octávio de Faria era o filho mais novo do empresário e também romancista Alberto de Faria; este adquiriu aquele imóvel, no final do século XIX, da família de Irineu Evangelista de Souza, o barão (1854) e depois visconde (1874) de Mauá. Assim, a residência da Família Faria, em Petrópolis, sempre foi ponto de atração de intelectuais e políticos, lembro que uma das filhas de Alberto de Faria, Maria Teresa de Faria, casou-se com Alceu Amoroso Lima, portanto, Alceu e Octávio foram cunhados.

Ainda não consegui mapear com a certeza que esta afirmação exige, mas sempre defendi a tese de que uma boa parcela da obra de Lúcio Cardoso foi escrita ali naquela residência da Família Faria, pois sabemos, pelo seu diário íntimo, que Lúcio passava longas temporadas neste refúgio petropolitano escrevendo e criando. Inclusive, muitas de suas cartas enviadas de Petrópolis têm no cabeçalho Casa dos Faria, o que comprova os longos períodos passados e vividos aqui na nossa cidade.

Lúcio Cardoso ainda é pouco conhecido no Brasil e tal fato é um sintoma do nosso desinteresse pela leitura e pela nossa tão rica literatura. As gerações atuais não o lêem, com exceção de pesquisadores, professores e alguns alunos, é considerado um autor difícil. Ora, a literatura é uma arte complexa que provoca rupturas e mudanças no leitor, isto é, ler é mexer com as funduras da alma, pois o texto literário provoca uma tensão interna, rompe com as certezas do leitor, transforma teses em hipóteses.

É este, ao meu ver, o que a obra de Lúcio Cardoso desperta e estimula, tirando-nos da zona de conforto, produzindo aquela espécie de dor e de mal necessários à nossa existência, a saber: a recepção tensa de um novo olhar sobre a vida e sobre as relações humanas. Por isso, repito a pergunta provocativa do título: quem tem medo de Lúcio Cardoso? E por quê?


Prof. Leandro Garcia
Presidente da APL

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