COLUNISTA
Há alguns anos, um aluno de Letras da UCP me perguntou: “Professor, existe uma literatura petropolitana?” Eu acabara de chegar à cidade, ainda não estava integralmente inteirado do nosso contexto cultural, então fui pragmático na resposta: “Não! Certamente, existe uma literatura produzida em Petrópolis, mas até ela ser petropolitana em termos de conceito crítico, acho que eu preciso de tempo para analisar e te responder”. Passados 13 anos deste episódio, continuo concordando com a minha resposta, apenas acrescento elementos para mim desconhecidos à época.
Para haver um conceito de “literatura petropolitana” deveríamos pensar e aceitar uma série de elementos tipológicos que configuram a existência de uma literatura A ou B. Dentre os tantos, cito alguns: elementos que configuram uma identidade especificamente petropolitana, ou seja, uma espécie de “ethos” próprio da nossa cidade que não encontramos alhures; uma representação espacial local, com qualidades e defeitos do nosso espaço, inclusive, da natureza e da cor locais; uma estilística daqui, isto é, um jeito todo nosso de escrever que provoque uma identidade que nos diferencie das demais cidades. Todos esses elementos, dentre tantos outros, unidos e atuantes, configurariam a existência de uma literatura petropolitana, o que parece não existir, felizmente.
Digo felizmente pois tal situação colocaria a nossa produção literária reduzida a um gueto geográfico e identitário, estaríamos circunscritos a um determinado espaço representativo, quando a literatura deve ser sempre universal e ampla. Por mais que falemos e exploremos a cor e os motivos locais, estes devem dialogar com contextos mais amplos. A fórmula deveria ser: quanto mais explorarmos o local, mais atingiremos o universal. Desta forma, não deve haver qualquer tipo de recalque por não haver uma “literatura petropolitana”, pois isto é positivo, uma vez que a existência de tal categoria implicaria num certo regionalismo de caráter isolado e circunscrito.
Feita esta ponderação crítica, o que temos? Uma profícua literatura “produzida e/ou circulada em Petrópolis”. Isto é inegável, é perceptível e sentido. Poucas são as cidades com uma produção e uma circulação literárias tão intensas quanto a Cidade Imperial! Isso sem dizer da presença de instituições culturais tão atuantes, como a nossa Academia Petropolitana de Letras, bem como várias editoras e gráficas especializadas que produzem imensa quantidade de livros e periódicos. Tudo isso traz uma riqueza ímpar para a nossa cidade, o que nos permite a dizer que vivemos numa Cidade das Letras. Assim, chegaram às minhas mãos duas publicações recentes sobre as quais eu gostaria de compartilhar algumas rápidas impressões críticas, dado o limite de espaço desta Coluna:
“O despertar de um sonho”, de Joana Maria Teixeira (Editora ID Cultural, 288 págs.).
Há muito tempo que não lia um “romance-romance”, isto é, um romance cujo enredo é centrado unicamente na paixão e no amor entre os protagonistas. Trata-se de uma narrativa longa, bem construída, cujo centro é a paixão avassaladora entre Emily e Ray, os protagonistas desta história.
Moradora da fazenda O Canto das Esmeraldas, Emily é aquele tipo de heroína que já foi muito comum na literatura brasileira: jovem, bela, sonhadora, pobre, órfã de mãe, trabalhadora e explorada de forma até servil no seu local de trabalho. Criada pela avó Donana, via no amor uma possibilidade de redenção e libertação de sua condição sofrida, o que ocorreu ao conhecer Ray, rapaz/príncipe que passou pela fazenda e a resgatou pelo amor, não obstante as inúmeras dificuldades que tiveram de lidar e vencer.
A escrita de Joana Maria Teixeira não segue as tendências atuais da autoria feminina na literatura brasileira, assaz marcada pelas denúncias de traumas e inquietações pessoais e coletivas; refiro-me à escrita literária dialogante com as diferentes pautas identitárias de hoje em dia. Creio que tal fato faz parte da estilística desta autora, sua opção pessoal de literatura, o que pode causar estranhamento no nosso contexto atual, deveras marcado pelas causas sociais. Pareceu-me que a grande causa, neste romance, é o ato de amar.
Quando digo que este tipo de romance já foi muito comum na nossa literatura, lembro-me especialmente de “Cabocla”, do grande Ribeiro Couto; ou então do maravilhoso “Helena”, de Machado de Assis; ou ainda do clássico e muito conhecido “A escrava Isaura”, de Bernardo Guimarães todos excelentes exemplares desta ideia de amor que gera redenção, tal como encontramos em “O despertar de um sonho”, que Joana Maria Teixeira acaba de publicar e nos oferece de forma generosa e tão simples.
“O último dia”, de Mariana Raede e Wagner Cinelli (Editora Gryphus, 166 págs.).
Quando afirmo que a literatura produzida e/ou circulada em Petrópolis é profícua, digo-o com base em inúmeras evidências, dentre as quais, a variedade dos gêneros literários que configuram tal produção. É comum termos lançamentos de romances, contos, poesia, história etc., mas fui positivamente surpreendido com a publicação deste livro uma peça de teatro! Há muito que não via a publicação de uma obra dramatúrgica pois, como é próprio da natureza deste gênero, tais textos são sempre encenados e debatidos a partir das representações teatrais. Quando publicados, isso ocorre sempre muito tempo depois.
Todavia, Mariana Reade e Wagner Cinelli inverteram essa lógica e nos oferecem esta peça teatral marcada por uma temática dura e terrível: a violência contra a mulher. Luana e Vladimir protagonistas de uma relação triste e doentia são metáforas de situações, infelizmente, comuns na nossa história marcada pelas mais diferentes experiências de violência. Vivemos num país historicamente violento que, infelizmente, tem sido o lócus de um aumento significativo de toda sorte de violência e assassinato de mulheres de todas as idades, credos e classes sociais.
O texto é difícil de se ler, porém é necessário. Difícil porque pela própria dimensão catártica do teatro somos envolvidos numa trama de horror envolta em uma relação abusiva, quando o companheiro manipula e “nadifica” a sua companheira. Sim, trata-se de uma prática de nadificação, algo comum nos abusadores, pois não enxergam que no outro lado da relação há um ser humano. Na visão doentia e predatória daqueles, a mulher é um nada, e por tal condição, devem ser diminuídas e até aniquiladas. Eis a triste encruzilhada que o texto de “O último dia” nos oferece.
No Prefácio, a escritora Andréa Pachá nos alerta: “Há teatro para entreter, há teatro para encantar. Também há teatro para sensibilizar, informar e, muitas vezes, pedagogicamente, estimular a alteridade”. É verdade tudo isso, e eu acrescento: há teatro para denunciar as agruras e as injustiças e anunciar um outro caminho, uma outra possibilidade, uma outra margem. Vejo isso em “O último dia”, de Mariana Reade e Wagner Cinelli.
Leandro Garcia
Presidente da APL e Crítico Literário