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Academia Petropolitana de Letras

COLUNISTA

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A Caravana paulista a Minas Gerais 100 anos

A celebração dos 100 anos da Semana de Arte Moderna, em 2022, provocou uma série de questionamentos e ressignificações possíveis para o processo modernista brasileiro, daí falarmos em modernismos, com bastante ênfase na ideia de plural. Algumas certezas: que a experiência paulista não foi a única que ocorreu, que o Modernismo se fragmentou por diferentes regiões brasileiras e que Minas Gerais exerceu um importante papel neste contexto. Passo a analisar este último caso, que me parece ainda não foi devidamente historiografado.

Logo depois dos eventos relacionados à Semana Futurista de São Paulo, popularmente conhecida como Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, o Modernismo brasileiro se espalhou por outros estados e cidades. Digno de análise é o caso do Nordeste brasileiro, no qual cada estado praticamente teve o seu próprio movimento de modernização das letras e da visão geral acerca da arte. Lembramos sempre da Bahia de Jorge Amado, mas é impossível ignorar as Alagoas de Jorge de Lima e Graciliano Ramos; a Paraíba de José Américo de Almeida; o Pernambuco de Ascenso Ferreira; o Ceará de Raquel de Queirós ou então o Rio Grande do Norte de Câmara Cascudo. Outro caso infelizmente muito desconhecido é o modernismo amazônico, que teve base em Belém do Pará, cujo movimento literário despertou o interesse pesquisador de Mário de Andrade e as análises críticas de Alceu Amoroso Lima: ainda não temos uma honesta historiografia literária das obras e dos autores desse movimento nas terras da região norte brasileira. Mas houve!

Em Minas Gerais, objetivo central deste artigo, um grupo de jovens estudantes universitários de Belo Horizonte com nomes como Carlos Drummond de Andrade, Gustavo Capanema, Pedro Nava, Emílio Moura, Abgar Renault, Martins de Almeida e outros movimentou a cena literária da capital mineira, já que todos eram ligados ao mundo das letras e da imprensa engajada. Eram conhecidos como o Grupo do Café Estrela, numa referência ao estabelecimento comercial onde se reuniam, na famosa Rua da Bahia, coração da capital mineira.

Para a surpresa e alegria desses rapazes, em 1924, circulou-se a notícia que um seleto grupo à época registrado como caravana de intelectuais paulistas passaria alguns dias conhecendo e passeando pelas cidades históricas de Minas Gerais. Tal caravana foi formada por Mário de Andrade, Oswald de Andrade (que levou seu filho Nonê), Olívia Guedes Penteado, Godofredo da Silva Telles, René Thiollier, Tarsila do Amaral e o poeta franco-suíço Blaise Cendrars. Chegaram a Belo Horizonte logo depois do carnaval daquele ano, que foi passado e festejado no Rio de Janeiro, e se hospedaram no famoso Hotel Central, partindo deste ponto para conhecer locais como Ouro Preto, Mariana, Congonhas do Campo e Sabará.

Interessante: estávamos há apenas 2 anos da Semana de Arte Moderna e já se começava uma espécie de revisão do nosso Modernismo! Uma questão levantada por Blaise Cendrars: como ser moderno ignorando a imensa tradição da arte barroca brasileira? Certamente, Cendrars fez essa pergunta após o impacto que teve visitando as obras de Aleijadinho, em Congonhas do Campo. Para o europeu, a modernidade não estava em apenas valorizar as novidades e as tendências vanguardistas vindas da Europa, mas em valorizar o que ele considerava como autêntica arte brasileira, neste caso, o nosso Barroco.

Não apenas isso, a passagem por Ouro Preto despertou em Mário de Andrade um intenso desejo de preservação do nosso patrimônio histórico-artístico-cultural, tanto que anos depois, Mário foi um dos artífices e entusiastas da criação do antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (o SPHAN), já em plena Era Vargas, na companhia do também escritor Rodrigo Melo Franco de Andrade. Isso sem dizer de uma entrada das tradições e temáticas religiosas e barrocas em outros artistas modernistas, como Cândido Portinari, Guignard e Murilo Mendes. Ou seja, o que tínhamos de mais antigo em termos de produção artística se tornou o tema central de uma valorização... modernista.

Além deste aspecto mais estético, foi graças à passagem da Caravana Paulista por Minas Gerais que uma das mais frutíferas amizades literárias teve início: Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. Estes foram apresentados pessoalmente durante os dias de hospedagem do grupo no Hotel Central de Belo Horizonte; a partir daí, iniciaram uma das mais importantes e significativas trocas epistolares da Literatura Brasileira, uma correspondência volumosa, com mais de 200 cartas, já todas publicadas, nas quais discutiram os caminhos do modernismo brasileiro e também o rumo da obra de cada um. Ou seja, fizeram da correspondência um verdadeiro laboratório de ideias acerca da modernidade brasileira e dos seus rumos estéticos e também ideológicos.

E ainda analisando o caso mineiro, é sintomático que a noção de modernismos, sempre no plural, aplica-se perfeitamente àquele estado, uma vez que outras cidades também tiveram seus núcleos de renovação modernista: São João Del Rei com o núcleo de Otto Lara Rezende e amigos; Cataguases com o famoso grupo em torno da Revista Verde, que trouxe a lume uma figura como Rosário Fusco; Barbacena, que recebeu o escritor francês Georges Bernanos que estava exilado à época e o caso mais emblemático de um modernismo mineiro: Juiz de Fora, que verdadeiramente desenvolveu um programa modernista com instituições culturais atuantes, como a filial do Centro Dom Vital, que despertou o surgimento artístico de figuras como Murilo Mendes, Henrique José Hargreaves, Cosete de Alencar, Belmiro Braga, Arlindo Daibert e o próprio Pedro Nava, já citado.

Neste ano do centenário da Caravana Paulista a Minas Gerais, mais uma vez somos levados a (re)pensar os rumos da modernidade literária brasileira, pensando sobre a importância das amizades, dos grupos e dos deslocamentos no sentido de uma busca da nossa identidade cultural tão marcada pela complexidade e pela diversidade. Tal Caravana inaugurou um novo olhar sobre a nossa ideia de Tradição, tão combatida por alguns modernistas mais intransigentes e adeptos de uma noção radical de vanguarda artística. Afinal, como pensava Mário de Andrade, a Tradição era importante, o que não se podia enfatizar eram os tradicionalismos, isto é, fórmulas passadistas anacrônicas e que não comunicavam com o mundo moderno. Creio que os mineiros entenderam bem tal desafio e praticaram tal premissa, afinal, o modernismo mineiro se apresenta como um harmonioso equilíbrio entre passado e presente, entre tradição e renovação.

Leandro Garcia

Presidente da APL e professor da Univ. Federal de Minas Gerais

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