COLUNISTA
Quem acompanha o meu trabalho enquanto crítico sabe que minha abordagem é, primeiramente, de cunho formalista, rejeitando o enfoque excessivamente conteudista que se torna, frequentemente, imperativo nos discursos críticos contemporâneos. No entanto, ao me deparar com Wicked, sinto-me compelido a realizar algumas reflexões sobre o enredo desta obra, que demandam uma análise mais profunda das suas implicações narrativas.
Wicked, embora seja um filme baseado em um musical homônimo (que, por sua vez, se fundamenta no livro de 1995 também intitulado Wicked), estabelece um diálogo direto com a versão cinematográfica de 1939, que é baseada na obra literária de L. Frank Baum, O Maravilhoso Mágico de Oz (1900). A película reinterpreta a história da Bruxa Má do Oeste, fornecendo uma nova perspectiva sobre os eventos que a transformaram na antagonista central do universo de O Mágico de Oz.
Toda manifestação cultural é, indubitavelmente, um reflexo de seu tempo, e Wicked se insere de maneira evidente no relativismo moral e cultural que caracteriza a contemporaneidade. Se revisitarmos autores consagrados como C. G. Jung, Mircea Eliade, Pierre Grimal, Joseph Campbell, J. R. R. Tolkien, C. S. Lewis e G. K. Chesterton, perceberemos que a transposição e a adaptação dos símbolos e arquétipos das grandes narrativas mitológicas e literárias podem enfraquecer os valores e as lições morais nelas contidas, comprometendo, assim, a formação ética e emocional dos indivíduos, especialmente as crianças. Esse processo de relativização do bem e do mal, do certo e do errado, é particularmente evidente na reinterpretação de figuras míticas que, ao serem desprovidas de seus significados originais, podem contribuir para a distorção da percepção moral das gerações futuras.
Os mitos e as grandes histórias, com seu vasto repertório de arquétipos, são veículos de significados profundos e universais que desempenham um papel fundamental na formação da visão de mundo e na edificação dos valores morais das crianças. Joseph Campbell, em sua obra seminal, demonstrou como essas narrativas fornecem um caminho para a superação de desafios, inspirando virtudes como coragem, autoconhecimento e determinação. A repetição desses símbolos e arquetípicos nas narrativas permite que os mais jovens absorvam lições sobre sacrifício, amor, justiça e outras virtudes universais que orientam a conduta humana.
Entretanto, inserido no contexto pós-moderno, caracterizado pela primazia da subjetividade e pelo relativismo moral, Wicked desconstrói as virtudes que tradicionalmente sustentam tais narrativas. O filme, de maneira quase subversiva, justifica as atrocidades e a tirania perpetradas pela Bruxa Má do Oeste, apresentando-a como a única figura virtuosa da trama, vítima da opressão e da corrupção de uma sociedade que a marginaliza, levando-a à prática do mal. O mal, assim, se torna relativizado, e a “heroína” da história, interpretada por Ariana Grande, é caracterizada como fútil, oportunista e débil. O Mágico, que na versão de 1939 se configura como uma figura de sabedoria e capacidade de levar os protagonistas a perceberem que as virtudes que procuram já estão presentes dentro deles, é reduzido a um charlatão indolente e ineficaz. O personagem que, de fato, demonstra algum tipo de consciência moral é subjugado, sendo desvalorizado em uma cena emblemática em que ele entra em uma biblioteca despertando atenção física de todos os homens e mulheres à sua volta, enquanto, ao pisar sobre os livros, subverte a função do conhecimento e da educação, instigando uma visão anti-intelectual que se reflete na canção que diz que "pensamento é tormento", que não há razão para estudar já que “na vida não há vestibular” e que a escola “apenas ensina o que aborrece” desafiando, assim, toda a tradição educacional e intelectual de nossa civilização.
Richard M. Weaver, em sua análise das ideias culturais e filosóficas, argumenta que elas têm um impacto profundo e duradouro na sociedade. Quando tais valores são disseminados em filmes voltados para o público infantil, a questão se torna ainda mais preocupante, pois pode-se formar uma geração imersa na relativização moral e na desvalorização do saber.
Em termos formais, o filme é bem-sucedido na recriação da ambientação de Oz, construindo de maneira convincente as fronteiras deste universo e estabelecendo uma dinâmica social coerente. A direção de arte merece, sem dúvida, destaque por suas conexões com o filme original, criando uma fusão entre elementos clássicos e modernos na construção dos cenários.
Entretanto, se considerarmos a composição musical, Wicked não atinge o nível de excelência alcançado pela versão de 1939, que produziu um repertório musical original composto por Harold Arlen e E.Y. Harburg, cujas canções possuem uma qualidade inigualável. Wicked, por sua vez, recorre às músicas do musical da Broadway, que não se comparam em termos de sofisticação e profundidade às composições do filme de Victor Fleming.
Em resumo, embora Wicked se proponha a entreter um público infantil, não cumpre responsavelmente essa missão. Embora apresente alguns momentos de interesse, a obra não inova substancialmente em sua forma, funcionando, assim, como um exemplo paradigmático daquilo que o filósofo polonês Zygmunt Bauman denominou recentemente como "cultura líquida", onde as referências, os valores e as normas se tornam instáveis e volúveis, subvertendo a estabilidade das narrativas tradicionais e suas lições essenciais.
Não é de se estranhar que o cinema norte-americano, em diversos momentos, recorra às sequências como uma estratégia mercadológica para perpetuar e comercializar uma narrativa previamente estabelecida. Em um contexto onde a lógica capitalista predomina, e o filme é, em última instância, um produto destinado à maximização do lucro, é natural que essa prática resulte, em algumas ocasiões, em produções desinteressantes e com uma sensação de artificialidade ou "forçação". A continuidade de uma história previamente "concluída" exige um nível de dedicação e criatividade excepcionais, de modo que a produção subsequente se apresente como uma extensão coerente e convincente da obra original. Moana 2 consegue concretizar essa tarefa de forma hábil e equilibrada.
A cautela, aliada a um receio implícito de subverter os elementos essenciais do filme original, torna-se um traço marcante desta sequência. A personagem Moana mantém-se como uma das figuras mais complexas e fascinantes do repertório da Disney, com suas virtudes imutáveis, como o respeito pelas tradições e pelos ancestrais, a coragem inabalável, a valorização da família, a amizade e o auto-sacrifício, características que, no primeiro filme, a tornaram ícone, e que são mantidas e aprofundadas nesta nova entrega. A comédia, por sua vez, segue sendo funcional, alinhada com o tom da narrativa, e as canções, tão envolventes quanto na obra predecessora, preservam o caráter imersivo da experiência. A interação entre os personagens antigos e os recém-introduzidos não só enriquece a trama, mas também fortalece a continuidade emocional que caracteriza a franquia.
Na trama que se desenrola, Moana se aventura mais uma vez ao lado de Maui, com o objetivo de unir os povos do oceano, três anos após os eventos do filme original. A cultura polinésia segue sendo o eixo central da narrativa, mantendo-se fiel aos alicerces do primeiro longa. Essa adesão ao universo estabelecido pode ser interpretada, à primeira vista, como um sinal de "preguiça" ou "medo" de inovar, porém, é possível argumentar que o filme atinge com eficácia o seu propósito, ao agradar tanto aos fãs da primeira produção quanto ao apresentar uma nova aventura cativante e enriquecedora, voltada especialmente ao público infantojuvenil.
É imperativo reconhecermos que a busca incessante por mudanças e inovações se configura como um dos traços mais evidentes da contemporaneidade. No entanto, seria um equívoco crasso conceber a qualidade artística exclusivamente como um atributo da inovação. Se assim fosse, deveríamos desconsiderar toda a produção artística de civilizações antigas, como a egípcia, cujas práticas milenares de criação e expressão, embora marcadas por uma relativa repetição, demonstram uma excelência estética, técnica e simbólica inquestionável. A grandeza da arte não reside apenas na busca por novidade, mas na capacidade de reinterpretar e reconfigurar elementos com profundidade e significado atemporais.
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