COLUNISTA
Inconcebível seria iniciar esse texto sobre O Auto da Compadecida 2 sem enaltecer o seu antecessor e evidenciar os elementos que o tornaram um dos filmes mais únicos do cinema. Entretanto, uma pergunta surge logo nas primeiras entrelinhas desse texto: tamanha genialidade está majoritariamente associada à peça original de Ariano Suassuna ou a adaptação se autoafirma suficientemente competente enquanto criadora de uma personalidade própria?
Suassuna se apropria de um gênero europeu medieval (o auto) e o insere no contexto do sertão brasileiro do início do século XX, criando uma interseção de influências entre esses dois espaços cronológicos e geográficos interligados por diferentes versões da cultura latina, a ibérica e a americana. Nesse gênero dramático e popular, personagens humanos frequentemente alegóricos representavam virtudes e pecados ao lado de personagens místicos maniqueístas. Até o personagem do trickster, frequentemente presente em autos europeus e representado em O Auto da Compadecida por João Grilo, é o grande destaque da obra de Suassuna, nos remetendo à grandes personagens do cânone (mítico-)literário mundial, como Loki, Odisseu e Hermes. Essa forma primitiva de auto se encontra com o misticismo nordestino-brasileiro que muito carrega das suas origens europeias, embora tenha desenvolvido muitas peculiaridades próprias. O cunho moralista e cômico dos autos permanecera na obra de Suassuna, enquanto ele insere vibrantes características culturais regionais, entregando um produto que mescla cultura europeia, cultura popular brasileira, misticismo, regionalismo e teatralidade caricata.
Com esse riquíssimo material base, Guel Arraes nos brinda com um filme à altura do título. Com diálogo, movimentos de câmera e cortes rápidos que giram majoritariamente em torno do personagem de João Grilo, Arraes estabelece uma mise-en-scène coerente à história contada. O grande mérito da obra está precisamente em transportar para as telas uma experiência teatralizada (ainda que o cinema e o teatro possuam linguagens completamente diversas) em seu ritmo, caracterização, atuação e cenários, e é justamente em alguns desses elementos que a sequência falha.
Em O Auto da Compadecida 2, um dos mais emblemáticos elementos do primeiro filme foi suprimido: os cenários. Substituir os cenários reais da Paraíba por estúdio revela nada mais que preguiça ou mal gosto. O regionalismo, as nuances nordestinas e os cenários construídos que remontam à palcos teatrais, deram lugar a uma computação gráfica pobre que parece tentar reproduzir uma estética característica de Tim Burton com raízes no Expressionismo Alemão, mas que entrega um universo vazio sem qualquer aproximação com a obra de 2000.
Seguindo exatamente a mesma estrutura do primeiro longa, o filme é uma mescla de erros e acertos, mas não consegue se aproximar da genialidade da primeira obra. Talvez a ausência de cenário, a repetição de grande parte do roteiro e a inexistência de uma peça base contribuam para isso, mas de qualquer forma, o filme funciona mais como uma homenagem nostálgica do que como uma genuína continuação, fazendo com que valha a pena uma visita ao cinema, mas não na expectativa de presenciar algo tão memorável como o filme de 2000.
Nosferatu é o mais recente filme de Robert Eggers, cineasta responsável por prováveis clássicos do terror, como O Farol e A Bruxa. Quem está familiarizado com a sua curta filmografia, identifica a sua estética através do tom soturno e misterioso, geralmente dialogando com elementos místicos e góticos. Não surpreende que Eggers tenha se interessado pela regravação do clássico de um dos maiores representantes da história do cinema alemão, F. W. Murnau.
Murnau, ao realizar o Nosferatu de 1922, objetivava produzir uma adaptação da obra de Bram Stoker. No entanto, ao lhe ser negado os direitos, ele contentou-se em uma obra inédita inspirada diretamente no enredo de Drácula, efetivando mudanças geográficas e nominais significativas, além de alterações em relação à história. Eggers, por sua vez, usa a obra de Murnau como base, legitimando o roteiro, mas inserindo elementos típicos da obra literária. O resultado disso é uma produção que conta umas das histórias de horror mais influentes da arte, resgata elementos do Expressionismo, atualizando-os, desenvolvendo uma estética própria pela característica do seu autor e entregando ao espectador uma obra legítima, com grande destaque para o trabalho fotográfico que entrega uma experiência atmosférica condizente ao clima melancólico da história.
Atualmente, é frequente que apreciadores pouco conhecedores da história do cinema se perguntem pelo “motivo de um filme ser feito” ou se “era necessária à sua produção”. Tais perguntas minimizam a linguagem cinematográfica a um nível de mera contação de histórias, ignorando toda a complexa comunicação linguística e psicológica que o cinema demanda. Há um século os teóricos Munsterberg e Arnheim já afirmavam isso, e na mesma época o cinema já colecionava remakes. A arte cinematográfica não se respalda no que o filme narra, mas sim em como ele narra. A história é apenas uma das várias camadas fílmicas, e isso oblitera qualquer questionamento sobre uma possível necessidade de um filme.
Eggers se apropria de um material existente, mas narra aquela história com autoria inquestionável, entregando ao público uma das melhores obras de terror lançadas nos últimos anos nos cinemas. Apreciar a obra original e a obra de 2024 são experiências distintas e memoráveis, justificando a visita aos cinemas livre do preconceito de ver algo que já foi feito, pois o Nosferatu de Robert Eggers é uma obra única.
Ambos os filmes estão disponíveis nos cinemas da Rede CineShow no Shopping Pátio Petrópolis.
Veja também: