COLUNISTA
Alguns filmes se propõem a ilustrar, de forma intricada e introspectiva, aspectos filosóficos que há séculos suscitam acaloradas discussões. Em um contexto em que as possíveis resoluções para tais questões são de difícil apreensão e assimilação, é natural que a seriedade se sobreponha. Contudo, o que ocorre quando temas de tamanha profundidade são explorados não por meio de uma mise-en-scène meticulosamente elaborada, pautada por longos e sofisticados diálogos em plano-contraplano com câmera fixa, mas sim por cortes rápidos, estética frenética e atuações de forte carga emocional?
A princípio, o resultado poderia ser um filme trivial, imerso em exageros desmedidos, que se perderia em sua proposta inicial, consumido pela superficialidade de um entretenimento dirigido a um público habituado a conteúdos breves e rasos das redes sociais. No entanto, Sam Baker subverte essa lógica, oferecendo um filme dinâmico, irônico, fascinante e substancial.
Anora narra a trajetória de Ani, uma dançarina erótica e prostituta de origem russa, cuja vida sofre uma reviravolta ao se envolver com Ivan, um jovem herdeiro também de ascendência russa, que reside nos Estados Unidos à custa da fortuna familiar, ostentando uma existência marcada por festas excessivas, prostitutas, conforto e substâncias ilícitas. A relação entre ambos se aprofunda, levando-os a uma imersão na vida fácil proporcionada pela fortuna do herdeiro.
Sam Baker, de maneira patente, segmenta o filme em duas partes, e essa divisão é claramente perceptível ao espectador, em razão das variações estéticas que permeiam a obra. Na primeira metade, onde Ani e Ivan vivenciam um relacionamento descompromissado, usufruindo da juventude e das riquezas de uma vida indulgente, a câmera, sem emitir juízos de valor, flutua ao redor das festas, do sexo e das drogas, conferindo uma certa poesia visual que ressurge como uma ode à efemeridade da vida e das conexões humanas. Inicialmente, essa poesia, que parece desconsiderar a moralidade, pode sugerir que todos os prazeres e relações interpessoais dentro desse microcosmo etariamente delimitado seriam imutáveis e perenes. Esse primeiro ato que pode ser considerado enfadonho por espectadores mais impacientes é, no entanto, crucial para preparar o estado psicológico do público para o segundo ato, que se inicia quando a família de Ivan toma conhecimento do casamento do filho e passa a tentar, de todas as formas, aniquilar essa união. Neste ponto, toda a estética do filme se transforma: o tom contemplativo e descompromissado dá lugar a cortes rápidos e secos, a situações absurdas e a sobreposições de vozes, impossibilitando qualquer coerência dialética ou racional.
A comédia frenética que permeia o filme possui o potencial de diluir sua proposta temática ao longo de festas, disputas e perseguições. Contudo, paradoxalmente, essas situações, além de entreter e capturar a atenção do espectador, aprofundam a questão central da obra, ao ponto de, no meio da trama, levantarmos a indagação sobre a verdadeira existência de relações humanas autênticas e significativas.
Conclave, a mais recente obra do aclamado cineasta alemão Edward Berger, reconhecido pela sua premiada reinterpretação de Nada de Novo no Front, é uma adaptação cinematográfica da homônima obra publicada em 2016 pelo renomado autor britânico Robert Harris. O filme narra a fictícia trama de um conclave, a solene e prolongada cerimônia na qual um colegiado de cardeais no Vaticano se reúne para eleger o novo líder da Igreja Católica e chefe de Estado do Vaticano. O processo de escolha do Papa, imerso em um véu de mistério, carrega consigo um simbolismo profundo, dado que os cardeais se isolam do mundo exterior até a definição do novo pontífice. A emblemática fumaça branca, que indica uma resolução, e a fumaça negra, sinalizando a falta temporária de um consenso, são aguardadas com grande ansiedade e devoção por fiéis que se encontram em estado de expectativa diante de uma decisão que reverberará em esferas espirituais e administrativas globais.
É evidente que, para além do mistério que permeia o evento, o misticismo intrínseco à ritualística assume uma importância central, uma vez que o novo Papa é considerado o representante máximo de Deus na Terra, sendo o sucessor de São Pedro na missão evangelizadora, um líder que não apenas molda as tendências espirituais e filosóficas, mas também exerce uma influência incomensurável sobre as vidas de milhões de seres humanos em todo o planeta.
O filme de Berger, no entanto, desfaz esse misticismo, revelando a faceta humana dos envolvidos, desnudando a aura de sacralidade e mostrando homens comuns, imersos em vícios, falhas e interesses pessoais, incumbidos de uma responsabilidade colossal. Ao aprofundar o caráter e as motivações de vários personagens centrais, Berger nos instiga a refletir sobre os múltiplos fatores econômicos, sociais e ideológicos que permeiam as relações entre os cardeais e as ambições de cada um deles pela nomeação ao papado. Assim, a obra se torna um convite à reflexão sobre o jogo de poder e as intrincadas dinâmicas de interesse que envolvem esse processo.
Paradoxalmente, mesmo ao humanizar a ritualística e reduzir seu componente místico, o filme preserva e até mesmo exalta a beleza inerente a esses rituais. O grande mérito da obra reside precisamente na sua habilidade em desvendar sem, contudo, despojar. Embora múltiplas leituras possam ser tecidas em torno dessa narrativa, é inegável que o cinema, em sua essência, é uma arte que se recusa a um único caminho interpretativo, permitindo uma vasta gama de possibilidades sensoriais e cognitivas.
Neste contexto, Berger entrega uma obra primorosa e extrapola o domínio religioso ao evidenciar que as grandes decisões que moldam o destino do mundo recaem, na maioria das vezes, sobre os ombros exaustos de indivíduos comuns, seres humanos portadores de histórias pessoais, ideologias, gostos e preferências. São esses mesmos indivíduos que ocupam os alicerces das estruturas de poder, escolhendo representantes que, direta ou indiretamente, definem o curso da humanidade.
Ambos os filmes estão concorrendo ao Oscar de Melhor Filme e podem ser assistidos nos Cinemas da Rede CineShow no Pátio Petrópolis.
Veja também: