COLUNISTA
Existem símbolos que, ao longo de diversas épocas e regiões, frequentemente assumem protagonismo em narrativas mitológicas e culturais. Essa persistência de símbolos pode ser interpretada como parte de uma herança filogenética, conceito que Joseph Campbell formulou ao desenvolver a ideia de monomito, ou a jornada do herói. De acordo com Campbell, todas as histórias arquetípicas compartilham um núcleo comum, representado pela figura do herói, sendo este um elo que conecta os diversos elementos presentes nas narrativas, funcionando como um microcosmo dentro do macrocosmo. Um dos símbolos mais recorrentes e significativos nessas narrativas é a água, frequentemente associada ao conceito de renascimento.
A teoria do monomito, desenvolvida por Campbell com base nos princípios do inconsciente coletivo de Carl Gustav Jung, identifica a água como um elemento recorrente nos mitos universais, onde frequentemente simboliza destruição, renascimento e purificação. Exemplos disso podem ser encontrados no dilúvio narrado nos mitos de Noé, Gilgamesh e Pachatira, bem como nos mitos de Ragnarök e Kali Yuga, onde a água se apresenta como um elemento essencial para o processo de regeneração do mundo. Em contrapartida, no Apocalipse cristão, onde não há espaço para o renascimento do mundo, a água é deliberadamente ausente da narrativa escatológica.
É justamente em torno desse elemento emblemático que a animação Flow se desenrola. Sem diálogos ou qualquer fala, o filme narra a história de um gato que sobrevive a uma enchente e se encontra sozinho em um mundo inundado. Durante sua jornada, o felino encontra outros animais de diversas espécies, também perdidos e em busca de sobrevivência, levando-os a colaborar mutuamente para garantir sua continuidade.
Com uma animação deslumbrante em cel-shading, o filme se destaca pela exploração do mundo submerso, que, embora engolido pela água, mantém sua identidade reconhecível por meio de paisagens e construções fantásticas. Esse é um dos principais pontos de destaque da obra. Os elementos e símbolos presentes na animação são facilmente identificáveis, mas sua união resulta em uma atmosfera onírica, intensificada pela arte da animação, pela flutuação da câmera, pela cenografia e até pela física do universo representado.
Gints Zilbalodis utiliza uma abordagem cinematográfica que evita a dependência de diálogos, privilegiando a imagem, o principal elemento do cinema. Ao se abster de textos ou vozes, o filme transcende barreiras linguísticas que, no formato convencional, seriam superadas por legendas ou dublagem, opções que muitas vezes não oferecem a mesma profundidade expressiva. Assim, o grande mérito de Flow reside precisamente na sua universalidade mitológica, cultural e linguística, ao inserir, no núcleo de sua narrativa, animais de diversas espécies e origens culturais, unidos pela luta pela sobrevivência.
Michel Foucault dedicou considerável parte de sua vasta produção intelectual à análise das complexas relações de poder, e, dentro desse domínio, à função do encarceramento e da punição nas sociedades contemporâneas. Em sua obra seminal Vigiar e Punir, o pensador francês realiza uma meticulosa reflexão sobre a evolução das práticas punitivas, destacando como um sistema de penalidades, anteriormente marcado pela brutalidade, foi gradualmente substituído por um modelo mais sutil, cujo núcleo está na regulamentação e controle do comportamento social. Segundo Foucault, a sociedade moderna impõe um regime de vigilância contínua, disseminada por métodos discretos. Para ilustrar essa transformação, o filósofo desenvolve o conceito de panóptico, inspirado na estrutura arquitetônica prisional, em que um único guarda poderia vigiar todos os prisioneiros sem que estes soubessem se estavam sendo observados, criando assim a ilusão de uma vigilância incessante, mesmo na sua ausência efetiva.
A história retratada em Sing Sing exemplifica bem as repercussões dessa dinâmica de poder e nos minutos iniciais do filme podemos até nos perguntar: estariam os presos dedicados ao teatro apenas para se sentirem livres da contínua vigilância?
A narrativa fílmica aborda o percurso de um conjunto de prisioneiros envolvidos no programa de reabilitação Rehabilitation Through the Arts (RTA), uma iniciativa que utilizava a arte como ferramenta de transformação e reintegração. Ao longo do processo, os detentos eram incentivados a participar de produções teatrais e atividades literárias, com o intuito de promover o confronto com seus próprios sentimentos, num esforço de recuperação pessoal e moral.
O ator Colman Domingo, que dá vida ao protagonista, assume o papel de um homem injustamente encarcerado, há anos dedicado ao RTA, e que se envolve ativamente na direção, atuação e escrita de diversas peças teatrais dentro da prisão. Ele contracena com vários ex-detentos que participaram do RTA, imbuindo a obra de certo realismo e criando maior conexão única com o público.
O filme apresenta uma abordagem honesta e sem excessos melodramáticos, centrando-se nas relações humanas complexas que se desdobram no interior da prisão. O questionamento central da obra gira em torno do poder redentor da arte: seria ela capaz de salvar os indivíduos, redimindo-os de suas falhas passadas e oferecendo-lhes uma nova razão para a continuidade da vida?
A unidade estilística da produção é bem definida. A câmera se aproximando das personagens em instantes meticulosamente escolhidos, movendo-se com uma delicada instabilidade e apresentando uma imagem, por vezes, ruidosa. Os interlúdios de silêncio se entrelaçam com uma trilha sonora sutil, que, ao emergir, infunde à trama maior carga emocional, intensificando a experiência do espectador.
O filme angariou três merecidas indicações ao Oscar: Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Ator e Melhor Canção Original. Não seria, contudo, uma surpresa se figurasse entre outras categorias, incluindo a de Melhor Filme, dada a força de sua proposta cinematográfica e o impacto de sua mensagem.
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