COLUNISTA
Silêncio, Abusos Institucionais e a Passividade Diante da Dor Alheia
Ambientado no Natal de 1985, em uma modesta cidade irlandesa, Pequenas Coisas como Estas narra a história de Bill Furlong, um vendedor de carvão de condições financeiras limitadas que leva uma existência monótona. Sua rotina diária é uma repetição mecânica de entregas, transações comerciais, retorno ao lar, uma meticulosa limpeza das mãos, jantares em família com sua esposa e cinco filhas, e noites insones.
Em determinado momento, durante uma de suas entregas a um convento, Bill encontra uma mulher trancada em um depósito. Movido por um impulso de compaixão, ele decide ajudá-la, mas logo descobre que ela será devolvida às irmãs do convento, que administram uma Lavanderia de Magdalena, um local onde mulheres socialmente estigmatizadas por engravidarem fora do casamento, por exemplo eram enviadas para "purificar-se".
Este episódio revela a conexão de Bill com essas mulheres, sendo que seu vínculo com o passado dessas vítimas de um sistema opressor é progressivamente desvelado ao público por meio de flashbacks que lançam luz sobre as
sombras de sua própria história. Com uma estética lenta, densa e sensível, o filme conduz o espectador ao universo interior de seu protagonista, cuja jornada emocional se torna o eixo principal da narrativa. A performance de Cillian Murphy, que retorna às telas após sua consagração no Oscar de Melhor Ator por seu papel em Oppenheimer, é um dos grandes pilares da obra. Murphy, em uma interpretação contida e de pouco diálogo, transmite uma carga emocional complexa, expressa não por palavras, mas por olhares furtivos, gestos discretos e ações de caridade. A maneira como ele constrói um personagem introvertido, de bom coração, mas marcado pelo sofrimento silencioso, cria uma empatia única com o público, tornando-se o coração do filme.
A direção de Tim Mielants, precisa e meticulosa, consegue resgatar o potencial dramático de um roteiro que, por vezes, falha em dar a devida atenção às mulheres que deveriam ser o foco da história. O filme, em muitos momentos, centra-se excessivamente no protagonista, relegando ao segundo plano o desenvolvimento das personagens femininas e o universo da lavanderia. Contudo, essa omissão pode ser interpretada não como um erro, mas como uma escolha estilística deliberada, uma vez que cabe ao diretor e ao roteirista decidir o que revelar e o que ocultar. O resultado dessa abordagem, por mais que nos conecte profundamente com Bill e sua visão de
mundo, levanta questões sobre a eficácia de um retrato que, embora comovente, acaba por ofuscar a narrativa das mulheres cujas experiências de abuso e sofrimento deveriam ser, em última instância, o centro da reflexão do filme.
Por fim, Pequenas Coisas como Estas se configura como uma jornada intimista que questiona não apenas o papel das instituições tradicionais e opressivas, como também oferece uma reflexão profunda sobre a passividade diante do mal. O filme instiga o espectador a ponderar sobre as consequências de ser um observador mudo da dor alheia e os desdobramentos que a inação pode ter na vida das pessoas envolvidas.
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Uma Reflexão Crítica sobre o Futuro da Humanidade e as Estruturas de Poder Mickey 17, dirigido pelo aclamado cineasta Bong Joon-ho (Parasita), é uma obra de ficção científica impregnada de um discurso social irônico e incisivo. O diretor, que tem se destacado ao longo de sua carreira por explorar questões de natureza social tais como as disparidades de classe, a precarização do trabalho, o aquecimento global e as crises existenciais típicas do século XXI , costuma abordar tais temáticas por meio de uma linguagem sarcástica, que permeia toda a sua filmografia. Embora tais características sejam notáveis tanto em suas produções coreanas quanto nas de língua
estrangeira, como Expresso do Amanhã e Okja, Mickey 17 parece intensificar essas questões, servindo como uma continuação e ampliação dos seus temas recorrentes. O filme, além disso, estabelece um diálogo explícito com a tradição da ficção científica, reverberando influências de obras clássicas do gênero, como Alien, o 8º Passageiro e Tropas Estelares, mas também subvertendo-as para apresentar uma crítica ainda mais contundente.
A trama acompanha um grupo de colonizadores, liderados por um político corrupto e manipulador, cuja missão é colonizar um novo planeta. A expedição oferece a oportunidade de se candidatar a diferentes funções. Nesse cenário, Mickey Barnes, interpretado (Robert Pattinson), é transformado em uma espécie de "homem consumível", incumbido da tarefa de sacrificar-se para salvar outros membros da expedição, considerados mais valiosos. Cada vez que Mickey morre, sua consciência é transferida para um novo corpo idêntico, mantendo suas memórias intactas, perpetuando assim a sua exploração dentro do sistema opressor que o vê como uma mera peça
descartável.
A narrativa adquire um novo dinamismo quando Mickey, numerado como Mickey 17, sobrevive inesperadamente a um acidente e, dessa forma, coexiste simultaneamente com uma nova versão de si mesmo, Mickey 18. As duas versões do personagem devem então interagir para preservar a ilusão de que são uma única pessoa. A interpretação de Pattinson se destaca de maneira notável, pois ele consegue conferir a cada versão de Mickey uma personalidade única e contrastante: enquanto Mickey 17 é caracterizado pela introversão e pela insegurança, Mickey 18 se revela egoísta e exuberante.
Outro aspecto central da narrativa é a reflexão sobre o direito à terra, um tema fundamental nas questões coloniais e no contexto histórico de exploração. Os novos colonizadores ignoram a presença de uma população nativa, representada por seres alienígenas grotescos, conhecidos como "rastejadores". Aqui, Bong Joon-ho recorre a uma ironia mordaz para abordar a questão da colonização e da marginalização dos povos originários, utilizando uma abordagem leve, mas ao mesmo tempo assertiva.
Em última instância, Mickey 17 é uma obra que habilidosamente combina entretenimento, crítica social e efeitos visuais deslumbrantes. Embora inserido dentro do contexto de um blockbuster hollywoodiano, Bong Joon-ho consegue se reinventar, preservando a essência de sua visão de mundo e expandindo os limites de sua filmografia. O filme não só mantém a assinatura única do diretor, como também propõe uma reflexão profunda sobre as questões existenciais e sociais que afligem a humanidade.
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