COLUNISTA
a dança cósmica da existência
A Vida de Chuck não é apenas um filme sobre a vida de um homem; é uma meditação poética sobre a passagem do tempo, a beleza das memórias e a inevitabilidade da morte. Baseado em uma das histórias do livro Com Sangue, de Stephen King, o longa marca um ponto de virada na carreira de Mike Flanagan, mais conhecido por seus trabalhos no terror. Aqui, ele deixa os sustos de lado para abraçar o drama existencial com um toque metafísico.
Narrado de forma não linear e dividido em três partes começando pelo fim o filme nos convida a conhecer Charles "Chuck" Krantz (interpretado por Tom Hiddleston) a partir de sua morte precoce, e então retrocede para explorar os momentos que moldaram sua vida. O espectador é lançado no meio de um mundo que está acabando, enquanto mensagens de agradecimento a Chuck surgem misteriosamente. O que poderia parecer apenas mais uma narrativa apocalíptica logo se transforma em algo muito mais íntimo e filosófico.
O filme tem uma abordagem anímica quase sinfônica. Os personagens dançam ao ritmo da existência, embalados por referências que vão de Carl Sagan ao poeta Walt Whitman. O calendário cósmico de Sagan aparece não apenas como um detalhe curioso, mas como uma âncora temática: a vida humana, ínfima diante da vastidão do universo, ainda assim é repleta de beleza, significado e impacto. Flanagan opta por uma construção narrativa que exige atenção: a memória de Chuck opera de forma associativa, e o filme se constrói como um mosaico de lembranças, sensações e símbolos. São essas referências internas, muitas vezes sutis, que enriquecem o enredo e
também o tornam desafiador. Para quem espera uma história linear e objetiva, A Vida de Chuck pode soar confuso ou mesmo hermético. Mas para os que se entregarem à experiência, o resultado tende a ser comovente.
Ainda envolto em méritos, o filme não é isento de falhas. Em alguns momentos, Flanagan parece confiar demais na narração em off para conduzir o público. Essa escolha, embora tenha um propósito emocional, acaba por enfraquecer o poder da imagem elemento mais essencial do cinema. A sensação é de que o roteiro não confia completamente na força visual da própria obra, e por isso recorre à palavra como explicação. Esse excesso de
verbalização quebra, por vezes, o encanto que o filme tenta construir com suas metáforas e atmosferas.
Mesmo assim, A Vida de Chuck se destaca como uma obra ousada e criativa, que usa a linguagem do cinema para refletir sobre os mistérios da existência humana. Com uma performance sensível de todo o elenco, uma trilha sonora envolvente e uma direção que aposta na emoção, Flanagan entrega talvez seu melhor trabalho até agora. Em um tempo em que tantos filmes buscam respostas fáceis e narrativas fechadas, A Vida de Chuck oferece o oposto: um convite à contemplação, uma celebração das pequenas coisas e uma dança delicada com a morte que, no fim das contas, é apenas outra forma de falar sobre a vida.
a odisseia interior de um herói ferido pelo tempo
O Retorno, nova adaptação inspirada nos cantos finais da Odisseia de Homero, chega aos cinemas em meio a uma onda de interesse renovado por narrativas épicas desde o aguardado projeto de Christopher Nolan sobre o mesmo personagem, até o lançamento de Gladiador 2 e outros títulos menores que bebem da fonte da Antiguidade. Nesse cenário, o filme dirigido por Uberto Pasolini aposta em um olhar mais íntimo sobre Odisseu, aqui chamado de Ulisses, vivido com intensidade por Ralph Fiennes.
Diferente de abordagens mais espetaculares, O Retorno se concentra menos nas aventuras e mais nas consequências. Ulisses não é mais o herói invencível que partiu para a Guerra de Troia; ele retorna a Ítaca como um homem quebrado fisicamente, emocionalmente e espiritualmente. Ao reencontrar sua ilha, descobre um lar em ruínas: o palácio foi tomado por pretendentes violentos, sua esposa Penélope (Juliette Binoche) vive sob constante ameaça, e seu filho Telêmaco (Charlie Plummer) luta para se manter vivo em meio a intrigas políticas.
O filme opta por retratar esse drama com um certo despojamento histórico uma escolha compreensível, dada a distância entre a narrativa mítica e qualquer reconstrução arqueológica precisa da Grécia Micênica. No entanto, essa liberdade criativa também leva a escolhas questionáveis: o uso de arquitetura anacrônica, figurinos inconsistentes e um elenco que pouco reflete a realidade étnica do Mediterrâneo Antigo que possuía fenótipo
majoritariamente mediterrâneo, com variações anatólio-levantinas podem incomodar os espectadores mais atentos ao contexto histórico-cultural.
Mais significativa, porém, é a exclusão quase total do elemento mitológico da obra de Homero. A ausência de figuras como Atena essencial no desenrolar da Odisseia retira parte do encanto simbólico do texto original. Aqui, não há deuses intervindo, monstros a serem enfrentados ou destinos guiados pelo Olimpo. Tudo é racionalizado, humanizado, talvez até demais. Essa escolha torna a jornada de Ulisses menos épica e mais introspectiva.
Apesar dessas limitações, O Retorno se sustenta graças às suas atuações sólidas. Fiennes entrega um Ulisses melancólico e intenso, cujo olhar carrega o peso de duas décadas de batalhas externas e internas. Binoche, por sua vez, confere dignidade e força silenciosa à Penélope, uma personagem que poderia facilmente ter sido reduzida a um símbolo passivo, mas aqui ganha espaço e profundidade.
A direção é competente, ainda que pouco ousada. Não há inovações formais ou grandes riscos estéticos, mas há solidez suficiente para construir um drama envolvente e emocionalmente eficaz. O Retorno pode decepcionar quem espera fidelidade mitológica ou grandiosidade épica. Mas, como estudo de personagem, funciona. É menos uma adaptação da Odisseia e mais uma reflexão sobre o que resta de um herói depois da guerra, depois do tempo,
depois da glória. E talvez seja justamente aí que o filme encontra sua força: na humanidade silenciosa de um rei que volta para casa e precisa reaprender a habitá-la.
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