COLUNISTA
Quando a Crítica Vira Espetáculo
Uma Batalha Após a Outra é o mais novo filme de Paul Thomas Anderson e seu filme mais político. Ele nos apresenta Bob Fergunson (Leonardo DiCaprio) como membro de um grupo guerrilheiro de esquerda que comete diversos crimes com o intuito de impor sua visão de mundo. Em uma das primeiras sequências, Perfídia (Teyana Taylor), companheira de Bob, confronta o líder militar Lockjaw (Sean Penn), atraindo sua atenção e tornando-se objeto de sua obsessão. Posteriormente, Bob e Perfídia se unem, têm uma filha, Willa (Chase Infiniti), e eventualmente se separam. Décadas depois, marcado por uma vida fracassada e emocionalmente devastada, Bob vê-se novamente confrontado por Lockjaw, que retorna após 16 anos para sequestrar Willa. Esse evento obriga Bob a encarar sua própria incapacidade de lidar com os acontecimentos à sua volta e o empurra a enfrentar uma realidade que o ultrapassa em complexidade e violência.
Inicialmente o filme parece se debruçar sobre temas contemporâneos relevantes, como a crise migratória, a condição dos refugiados e as disparidades sociais. No entanto, essa proposta se esvanece à medida que a narrativa avança, diluindo qualquer análise mais aprofundada desses problemas em prol de uma estrutura narrativa mais convencional e maniqueísta e também de uma questão geracional, enaltecendo a atitude rebelde e revolucionária de gerações passadas.
No entanto, o aspecto mais problemático do longa reside na evidente contradição entre seu conteúdo político e sua forma de produção. Anderson manifesta uma mensagem politizada, mas o faz utilizando-se de um aparato cinematográfico de altíssimo orçamento, típico das grandes produções hollywoodianas. Essa tensão expõe uma incongruência fundamental: a tentativa de comunicar uma crítica sistêmica por meio dos próprios mecanismos do sistema que se pretende criticar. Tal estratégia contrasta, por exemplo, com a postura de cineastas militantes das décadas de 1960 e 1970, que buscavam formas alternativas de produção e distribuição rejeitando o capital, coerentes com seus discursos políticos. Em Uma Batalha Após a Outra, essa coerência inexiste e o filme se torna um blockbuster hollywoodiano capitalista com fachada esquerdista e revolucionária. Ainda que o filme tente por vezes expor incongruência da esquerda, o olhar lançado sobre os guerrilheiros, especialmente Bob, revela empatia e admiração, por vezes até afetuosa, apesar de suas contradições e limitações morais. Ao contrário, os militares e homens do governo são representados de forma caricatural, com falas ríspidas, desprovidas de nuance.
A despeito dessas contradições, se o filme for compreendido não como uma obra engajada, mas como um blockbuster hollywoodiano com elementos políticos pontuais, ele se revela uma experiência cinematográfica altamente eficaz. A estrutura híbrida do filme combina ação com elementos de outros gêneros como a comédia sutil presente na representação de um Bob emocionalmente desnorteado, ou a atmosfera de western que permeia a sequência final, visualmente deslumbrante. Anderson demonstra aqui seu talento como realizador, criando uma obra que, embora não atinja o patamar de suas criações mais ambiciosas como Sangue Negro ou Magnólia , ainda assim proporciona uma experiência estética envolvente e complexa.
A memória de uma da insurreição
Baseado em fatos históricos, Malês retrata a Revolta dos Malês, considerada a maior insurreição de escravizados já ocorrida no Brasil. O levante, ocorrido em Salvador (Bahia), no ano de 1835, foi protagonizado por africanos muçulmanos em sua maioria iorubás que articularam uma ação coordenada contra o sistema escravocrata vigente. A narrativa acompanha a trajetória de um casal separado à força ao ser sequestrado na África e trazido ao Brasil como parte do tráfico transatlântico de escravizados. Enquanto lutam para sobreviver e se reencontrar, ambos se envolvem nos acontecimentos que culminam na revolta. Pacífico Licutan (interpretado por Antonio Pitanga) surge como um dos principais articuladores da insurreição, ressaltando a importância da união entre diferentes etnias, culturas e religiões africanas na luta contra a escravidão.
A produção se destaca positivamente por lançar luz sobre um episódio frequentemente negligenciado pela historiografia oficial e pelo cinema nacional. É sempre notável quando o Brasil volta seu olhar para a própria história e investe em narrativas de época. Nesse contexto, Malês representa um esforço relevante. A presença de Antonio Pitanga, aos 85 anos, na direção e no elenco, agrega valor simbólico e histórico à obra, especialmente considerando sua trajetória no cinema brasileiro.
Um dos elementos mais louváveis do filme é seu compromisso com a complexidade histórica. A obra evita visões maniqueístas que opõem brancos e negros de forma simplista. Ao mostrar, por exemplo, africanos participando do sequestro e comercialização de seus pares, o filme reconhece que a dinâmica da escravidão envolvia relações de poder e opressão internas à própria África, algo frequentemente omitido ou suavizado. Tal escolha revela uma tentativa de historicizar o processo escravista sem reduzi-lo a dicotomias morais rasas, sem, no entanto, diluir a brutalidade do sistema escravocrata colonial.
Além disso, o filme apresenta aspectos significativos da vida dos escravizados, como o uso sistemático do estupro para fins de reprodução forçada e a catequese em português como mecanismo de dominação e apagamento cultural. A questão da linguagem cuja complexidade histórica é imensa, dada a diversidade linguística africana e o papel do português como língua de controle é abordada com cuidado, demonstrando a preocupação da produção com a autenticidade sociocultural do período.
No entanto, apesar da relevância temática e da densidade histórica, Malês incorre em uma limitação recorrente em muitas produções brasileiras: a estética televisiva genérica. Em diversos momentos, a linguagem audiovisual aproxima-se do modelo telenovelesco, com enquadramentos, iluminação e direção de atores que remetem mais à TV aberta do que ao cinema de linguagem própria. Esse tratamento imagético padronizado compromete a potência estética da obra e reduz sua capacidade de provocar o espectador também pela forma especialmente em um filme que pretende revisitar criticamente a história brasileira.
Apesar de suas limitações formais, Malês é uma obra de inegável relevância no contexto do cinema histórico brasileiro. Ao recuperar um episódio de resistência negra frequentemente marginalizado pela narrativa oficial, o filme contribui para a ampliação do imaginário coletivo sobre a escravidão, deslocando o foco da vitimização passiva para a agência política dos africanos e afrodescendentes no Brasil. Ainda que sua estética televisiva atue como um entrave à radicalidade formal que a temática exigiria, a obra representa um esforço legítimo de reinscrição da memória negra na história nacional. Nesse sentido, Malês se insere no conjunto de produções que buscam não apenas narrar o passado, mas reconfigurar as formas pelas quais ele é representado, tensionando o papel da imagem na construção da consciência histórica.
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