COLUNISTA
Gastão Reis (*)
Em 17 de fevereiro deste ano, publiquei, aqui em O Dia, um artigo intitulado “O golpe que não houve e o outro” em que analisava a questão dos diversos tipos de golpe que marcaram a história republicana brasileira. Dentre eles, aquele que permite o surgimento da ditadura do Judiciário, acerbamente criticada por Ruy Barbosa, que a qualificava como como a pior delas, pois não haveria a quem recorrer. No texto, denunciava a tentativa de punir crime de pensamento, algo que não havia acontecido por falta de materialidade, esta sim a ser punida, e prevista, quando ocorre, em Lei.
Eu me referia à tentativa de golpe de Estado em gestação no final do governo Bolsonaro, que nunca deu as caras como fato consumado. Chamava a atenção para o fato de Bolsonaro ter tido um histórico disciplinar controverso dentro do Exército, que trabalhava contra suas supostas intenções golpistas. E para o fato concreto de que não houve golpe. Alertava ainda quanto ao outro golpe de que nos falava Ruy Barbosa, sob a capa de defesa da democracia, em que o ministro Alexandre de Moraes assumia simultaneamente funções que lhe eram proibidas pela própria constituição vigente.
De repente, não mais que de repente, a sociedade brasileira tomou conhecimento, neste mês de novembro, através de investigações da Polícia Federal, das maquinações de um grupo de militares golpistas que pretendia assassinar Lula, Alkmim e o ministro Alexandre de Moraes pouco antes da posse do atual governo federal. A ligação de Bolsonaro com o grupo é sugerida em busca do afastamento definitivo dele da seara política. Um dos ameaçados, Alexandre de Moraes, assume o palco como juiz dele mesmo. Mais uma vez, violando a constituição de 1988.
Golpe de trazer Lula de volta...
Defensor do debate civilizado, confesso minha surpresa ao ler, somente agora, o artigo do Prof. Fernando Luiz Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da FGV-SP, publicado no jornal Valor, em 23/08/2024, intitulado “O Desafio da Reconstrução Institucional”. Tem pontos positivos e negativos, estes por falta talvez de uma visão histórica de longo prazo sobre os frequentes percalços do regime republicano brasileiro.
Logo no primeiro parágrafo, ele nos fala de que entre 1993 e 2013 teria havido a implementação das melhores ideias da Carta de 1988. E que, após várias emendas, teria alcançado um equilíbrio inédito entre democracia, estabilidade econômica e inclusão social. Na verdade, não foi bem isso que aconteceu. Abrucio, aparentemente, entende democracia como o direito de votar. Sem voto distrital puro, ou algo equivalente, e ausência da possibilidade de revogação de mandatos parlamentares (recall), entre as eleições, o controle que o representado tem sobre seu representante é rarefeito.
Em seguida, ele reconhece que, após o referido período, houve muitas crises em que as ruas pediam “maior responsividade do sistema político em relação à sociedade”. É bom lembrar que a baixíssima responsividade é um fenômeno do regime republicano brasileiro desde seus albores. A raridade das consultas populares em nossa história confirma o fato. A estabilidade econômica, em boa medida, decorreu do controle dos preços via Plano Real, após décadas de inflação. Quanto à inclusão social havida, não foi nada tão significativa. Basta consultar os números e constatar a persistência dos elevados níveis de desigualdade ao longo das últimas décadas no Patropi.
Abrucio reconhece que “o país está hoje com Poderes desequilibrados e uma grande parcela dos políticos atuando em prol do aumento do conflito, inclusive sobre assuntos desimportantes...”. Ele não toca na falha gritante do presidencialismo que reúne na pessoa do presidente as chefias de Estado e de governo. A chefia de Estado em separado, em países parlamentaristas, ainda hoje, entra em ação para colocar a casa em ordem quando é preciso. Sem dúvida, com menores poderes do que os conferidos ao poder moderador nos tempos do Império, mas sem perder o caráter moderador e apaziguador nos momentos em os poderes ditos harmônicos e independentes se desentendem.
Diz ainda que essa montanha de poderes no legislativo “tende a levar à perda de todos no longo prazo”. E aponta o dedo para o encolhimento dos investimentos públicos federais. Ele não chega a ressaltar que esta redução despencou de 10 para menos de 2% do PIB. Foi um golpe duro na capacidade de investir do País, agravada pela elevada carga tributária que reduz em muito os investimentos privados. Daí o crescimento pífio da renda real per capita.
Após mencionar as emendas Pix e afins, ele nos fala de circunstâncias e denúncias que só vão parir resultados negativos para os congressistas. O desenlace desse processo seria uma nova leva de candidaturas antipolítica, que se somariam aos já encastelados no bolsonarismo-raiz. Logo em seguida, refere-se à crise de legitimidade ocasionada pelas manifestações de rua, Lava-Jato, impeachment presidencial e crescimento da extrema direita antipolítica, “o núcleo principal da classe política hoje homogeneizado pelo Centrão”. Tudo isso teria fortalecido as características mais oligárquicas do sistema.
Foi a primeira vez, que tive a oportunidade de entrar em contato com a expressão “extrema direita antipolítica”. Como de hábito, no Brasil, não existe extrema esquerda à qual caberia bem melhor o rótulo de antipolítica. Afinal, tem coisa mais antipolítica do que a ex-URSS, Cuba, Nicarágua ou Venezuela? É praça pública grega restrita a quem está de acordo com o poder de plantão.
No final do artigo, Abrucio nos brinda com a seguinte afirmativa: “O lulismo sempre esteve acoplado à escolha de programas governamentais que sustentam sua legitimidade”. É preciso boa dose de amnésia para o fato de Lula ter dado outro nome a programas que já existiam à época de FHC, que teve o cuidado de exigir contrapartidas de quem recebia os benefícios. Aos poucos, Lula simplesmente foi esquecendo das contrapartidas, tornando o acesso cada vez mais fácil. Isto tem nome e se chama populismo. E foi num crescendo a ponto de ter que passar, agora, um pente fino no BPC Benefício de Prestação Continuada devido aos abusos que vêm sendo cometidos.
Ao mencionar a questão-chave da reconstrução institucional, Abrucio nos fala da necessidade de um “novo equilíbrio de poderes”. E de uma reconfiguração do falido presidencialismo de coalizão, agora, mais de colisão do que nunca. Ressalta a melhoria das relações que teria havido no plano da federação desde a posse de Lula e dos novos governadores. Como diria aquele personagem de Chico Anísio: “Há controvérsias!”. Critica, com razão, as decisões monocráticas em detrimento das colegiadas no STF. Passa em branco a conivência dos demais ministros que dão carta branca para as monocráticas.
Difícil de engolir foi sua afirmação de que Alexandre de Moraes “foi o ator mais importante na garantia da democracia contra a tentativa de golpe bolsonarista”. Mas o golpe do STF ao ressuscitar Lula politicamente, nas palavras do ex-ministro Marco Aurélio Mello, pode. Pior: Moraes passou por cima das garantias dos direitos constitucionais dos envolvidos no 8 de Janeiro. Foi ditatorial e não apurou os fatos com foco em quem realmente participou do quebra-quebra diante dos gritos de “Não quebra!” de muitos participantes.
O fecho de cobre, não de prata nem de ouro, foi a definição do que é o sistema presidencialista, em que o “líder presidencial deve ser o construtor de caminhos melhores para o país em conjunto com os demais poderes”. Na verdade, o que ocorre no nosso presidencialismo é uma absurda concentração de poderes, inclusive na esfera financeira, na presidência da república. A reconstrução institucional via retorno ao presidencialismo de coalização é perda de tempo. Reler a constituição de 1824 seria bem mais inspirador.
Nota: Digite no Google: “Quando o Brasil perdeu o rumo da História”. Entrevista minha com mais de 23 mil visualizações.
Autor: Gastão Reis
Economista e escritor . E-mails: gastaoreis@smart30.com.br // ou gastaoreis2@gmail.com
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