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Gastão Reis

COLUNISTA

Gastão Reis

MACHADO DE ASSIS, REALISMO MÁGICO E DESIGAULDADE

Lá pelos meus 15 ou 16 anos, eu me lembro bem de ter lido “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Inexperiente, confesso minha surpresa inicial diante de um defunto capaz de narrar suas memórias. Depois, me dei conta de que o defunto estava bem vivo e se chamava Machado de Assis. Já idoso, o reli, em voz alta, para deleite pessoal e, como sempre ocorre com as grandes obras, para aprender algo novo, que sempre escapa na leitura anterior.

Ao longo das décadas, a obra foi ganhando fama e louvor internacionais sempre maiores. Gente famosa como Wood Allen, dentre outros, se declararam fãs do bruxo do Cosme Velho. Não obstante o reconhecimento como um dos grandes escritores da humanidade pela crítica internacional, parece ter ficado na penumbra o lado realismo mágico que se evidencia na obra “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.

Não é muito difícil de comprovar o que foi dito no parágrafo anterior. Basta fazer o cotejo das características do realismo mágico com esta obra de Machado de Assis rotulada pela sabedoria convencional como apenas realista. Na verdade, a palavra mágico tem todo o direito de também estar presente. A expressão realismo mágico vem desde os fins dos anos de 1940 para identificar a ficção hispano-americana que se contrapunha ao realismo e ao naturalismo do século XIX, e contra a chamada “novela da terra”.

A fase mais expressiva deste estilo literário teve início nos anos de 1940 com escritores de porte nacional e internacional como Jorge Luis Borges, argentino, autor do famoso livro “O Aleph” (1949); Alejo Carpentier, cubano de origem franco-suíça, autor de “O reino deste mundo” (1949); e Arturo Uslar Pietri, venezuelano, que foi o primeiro a empregar a referida expressão e autor de “Letras y hombres de Venezuela” (1948). Para ele, o realismo mágico incor-porou o mistério à realidade, contrapondo-se ao tradicional real lógico-racional.

Todos eles viveram num contexto de ditaduras militares repressivas que impunham forte censura à liberdade individual, política e artística. Na época, escritores e artistas eram frequentemente censurados, perseguidos e até mortos. A saída era se autoexilarem em países democráticos. Seus livros denunciavam as contradições da realidade, mas de forma metafórica, permeadas de situações mágicas e sobrenaturais, dando um sabor alegórico ao enredo, que ludibriava os censores como se fosse mera ficção fantasiosa. Na verdade, a crítica política estava presente de modo velado.

Para fazer o contraponto com a obra de Machado de Assis, vejamos as principais características do realismo mágico: enredos sempre marcados por elementos sobrenaturais; em termos de tempo da narrativa, passado, presente e futuro se misturam sem tender a uma lógica linear; convivência da realidade lógica com elementos mágicos; linguagem subjetiva permeada de metáforas e alegorias; e a presença de crítica político-social velada.

“Memórias póstumas de Brás Cubas” praticamente atende a quase todos os requisitos listados no parágrafo anterior. E nos revela um Machado de Assis como precursor. Mas existe nele a crítica social, qualitativamente distinta da dos autores hispano-americanos. Estes estavam se debatendo contra os horrores de ditaduras militares. Machado viveu boa parte da vida no Brasil do século XIX, onde imperava a liberdade de imprensa e de expressão. A crítica feita por ele era em relação à elite daqueles tempos em que as aparências estariam no comando.  E muita gente se baseia em Machado para desqualificá-la. Mas não combinaram com a realidade histórica de então revelada pelas novas pesquisas.

Na verdade, Machado pedia aos deuses que “afastassem do Brasil o sistema republicano, porque esse dia seria o do nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais iluminou”.  E acertou na mosca. Esta passagem do próprio Machado ameniza em muito a visão tradicional da crítica que ele teria feito à aristocracia de então. Mas não é só isso. Diplomatas brasileiros, também historiadores, habituados por dever de ofício a consultar as fontes, como Helio Vianna, Boris Fausto, Oliveira lima e Heitor Lyra foram unânimes em reconhecer o bom desempenho do Império na economia.

Mas a pá de cal nesta visão pode ser confirmada no Abstract do bem fundamentado artigo “Estagnação Secular? Uma nova visão sobre o crescimento do Brasil ao longo do século XIX”, de autoria dos professores Edmar Bacha, Guilherme Tombolo e Flavio Versiani.

Ali é dito o seguinte: “A historiografia econômica consolidada afirma que o PIB real per capita brasileiro estagnou no século XIX, e que ele cresceu muito devagar no período monárquico (1822-1889). Nós contra-argumentamos que estas conclusões estão baseadas em métodos inadequados e em evidência estatística insuficiente. Trabalhando com base na metodologia de Tombolo (2013) e fazendo uso de nova base de dados, nós estimamos que, ao longo do período 1820-1900, a renda real per capita do Brasil manteve uma tendência de taxa de crescimento de 0,9% ao ano, um desempenho semelhante ao crescimento da Europa Ocidental e de outros países latino-americanos na época”.

Mais um argumento poderoso a favor do Império pode ser buscado na constituição de 1824. Afonso Arinos de Melo Franco afirmava que foi a melhor que já tivemos, e ressaltava o fato de ter sido um instrumento legal capaz de preservar o interesse público, e não de grupos, evidente na Carta de 1988.

Fazendo uso da terminologia do economista Daron Acemoglu, pode-se dizer que o Império moldou instituições inclusivas, aquelas capazes de incluir todos no processo de desenvolvimento. A luta pela abolição foi coroada pela Lei Áurea em 1888. Sergio Buarque de Hollanda nos informa que o país em que os fazendeiros do café mandavam e desmandavam nasceu com a república.

A Belíndia de Edmar Bacha foi obra da república. Prova? Um milhão de aposentados do setor público consome 70% dos recursos destinados ao pagamento de aposentadorias. Os 22 milhões do setor privado, apenas 30%.

Nota: Para assistir minha palestra, digite no Google: “Dois minutos com Gastão Reis: O legado da herança luso-afro-indígena até 1889”.   Ou pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=uuLxB3Mysns&t=6s

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