COLUNISTA
Iniciemos por uma pergunta: qual é a maior dificuldade a ser superada quando pretendemos moldar instituições que permitam a um país crescer de modo sustentado e inclusivo? A melhor resposta me parece ser a seguinte: construir instituições que permitam o efetivo controle do andar cima. Na medida em que isso não acontece, o país descamba para a defesa de interesses distantes do bem comum. Os grupos de interesse comandam o espetáculo.
Não estou sozinho na defesa desta visão no contexto histórico. Daron Acemoglu, em seu livro “Por que as nações fracassam?” faz um longo apanhado histórico de países que foram capazes de moldar instituições inclusivas e daqueles que se perderam nas denominadas extrativas. Ou seja, um país para poucos. O Brasil republicano na questão do combate à desigualdade se mostrou incompetente. Será que, desde o início, estaríamos condenados ao fracasso nessa área em função da longa presença da escravidão?
Diferentemente do que nos diz a história tradicional, os caminhos trilhados no passado não levavam forçosamente ao quadro de exclusão que a república brasileira nos oferece desde sempre. A trilogia “Escravidão”, de Laurentino Gomes, obra bem pesquisada, nos informa que houve coisas diferentes no nosso passado. Ele nos revela que a região das Minas Gerais, no fim do período colonial, tinha uma população de cerca de 400 mil almas. O espantoso é que, na mesma época, viviam na região cerca de 160 mil negros forros. Nada menos do que 40% daquela população eram libertos.
Laurentino Gomes nos diz ainda que alforrias em tamanho volume praticamente não existiam em outras partes do mundo. O Brasil era uma exceção. Nas visitas de D. João VI à Fazenda de Santa Cruz, ele se divertia “com os ditos dos escravos, que se dirigiam com mais facilidade ao rei que aos próprios feitores”, como nos informa o Prof. Lourenço Lacombe, diretor por muitos anos do Museu Imperial, em seu livro “Biografia de um Palácio”.
Ao longo do Império, houve um trabalho de formiguinha e, simultanea-mente, no plano jurídico em direção à emancipação dos escravos. D. Pedro II ao assumir o trono libertou todos os escravos da Família Imperial, passando a lhes pagar salários. Em suas visitas país afora, os fazendeiros sabiam que o melhor presente que podiam lhe dar era o de libertar alguns escravos. E assim, muitos, acabavam fazendo a coisa certa para marcar pontos junto ao monarca.
No âmbito legal, foram passadas várias leis, uma das mais impactantes foi a do Ventre Livre, ou Lei Rio Branco, de 1871. Foi a Princesa Isabel como regente que a assinou. Cabe registrar que o número de escravos após a Lei caiu de 1.500.000 para cerca de 750 mil em 1887, no último registro geral das estatísticas do Império. E, de fato, na assinatura da Lei Áurea, foram libertos os últimos 20% restantes. 80% já eram livres. Foi certamente o único período de nossa História que se levou a sério o combate à desigualdade. Havia confiança entre governados e governantes.
Nos últimos artigos publicados na grande mídia, é visível a preocupação dos colunistas de peso nacional quanto à necessidade de uma reforma radical na legislação vigente no sentido de coibir os usos e abusos do andar de cima em benefício do próprio umbigo. Este desconforto com a moldura político-institucional do país nos permite relembrar, com razão, do que já tivemos e deixamos de ter nessa área delicada de controle efetivo dos governantes.
O arcabouço político-institucional republicano, mais uma vez, está em crise. É visível o desconforto da população em geral com o que vem acontecendo. A narrativa da defesa da democracia encobre a defesa de interesse de grupos de poder no sentido de manter privilégios inaceitáveis. É possível verificar o desencontro entre a mídia televisiva de certos canais e a mídia impressa nos jornais de circulação nacional. Estes vão num crescendo de indignação em relação aos atos do executivo e legislativo federais e do próprio judiciário em decisões monocráticas que não enganam mais a população.
O País vive uma crise aguda de confiança. Quando um povo expressa um elevado grau de rejeição a seus governantes nas três esferas de poder torna-se óbvia a necessidade de mudanças estruturais capazes de restaurar a confiança perdida. De um modo geral, quando avaliamos o desempenho das câmaras municipais brasileiras o quadro que constatamos é o de gente demais para trabalho de menos. Ou seja, ineficiência e ineficácia de mãos dadas.
Ao visitar Portugal, na cidade do Porto, fiz uma espécie de pesquisa de campo. Fui matar minha curiosidade para saber como funcionava uma câmara municipal portuguesa. O vereador que me recebeu me disse o seguinte. O poder executivo, o prefeito, funciona aqui na câmara municipal. Nós, os veadores, trabalhamos como secretários municipais de segunda a quinta-feira, e, às sextas-feiras, nos dedicamos às questões legislativas propriamente ditas.
Ao ouvir isto, eu me dei conta de como lá o poder legislativo funciona de modo muito mais prático e eficiente. Sem dúvida, estamos diante de um país que nunca abandonou o sistema parlamentarista. Neste sistema, a equipe do poder executivo nasce no berço do poder legislativo. Mesmo no poder central, os ministros saem do Parlamento, como é comum até hoje na Inglaterra e demais países parlamentaristas. E a oposição também está lá no poder legislativo fiscalizando os atos do poder executivo. Nem todos os vereadores são do partido do prefeito municipal. Estes últimos são duros fiscais que dão vida à política e à democrática em Portugal.
O lado patético do exposto é que o Brasil funcionou assim, e bem, até 1889. Depois veio o presidencialismo em que o presidente chega ao poder sem dispor de base de apoio no Parlamento. Poderíamos estar em outro plano de desenvolvimento, bem mais elevado, como já disse em entrevista o governador Tarcísio de Freitas, de São Paulo.
Até quando vamos aturar essa perda de tempo histórico?
Nota: Digite no Google: “Dois minutos com Gastão Reis: Confiança a ser recon-quistada”. Link: https://www.youtube.com/watch?v=CLG9Q7cY12E&t=18s
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