COLUNISTA
Sempre me impressiono com o fato de o Nostradamus de nossa pobre história republicana, Raúl Rojas, o lúcido, competente, e empreendedor presidente da Venezuela, quando, após tomar conhecimento do golpe militar que proclamou a república, em 1889, afirmou o seguinte: “Pronto, lá se foi a única república de fato que existia na América Latina.” E foi acompanhado no vaticínio por dois outros presidentes de países da região.
O primeiro elogio vai para a lucidez desses três presidentes latino-americanos, em especial para a frase de Rojas. Este era um homem bem informado, e que sabia o que era o Brasil de então. Muito provavelmente, tinha conhecimento de nossa Carta de 1824, e das garantias aos direitos individuais nela estabelecidos, o que incluía a liberdade de imprensa, de expressão e pensamento, e ainda garantia à população o direito cobrar por escrito providências sobre qualquer tipo de arbítrio cometido pelas autoridades.
Juristas ingleses elogiaram a Carta de 1824 como a segunda melhor constituição na época, logo abaixo da americana. Só esqueceram de deixar claro que a constituição americana original não garantia a liberdade de imprensa e de religião, depois estabelecida pela Primeira Emenda. No nosso caso, no Art. 5º do texto constitucional, era garantida inclusive a liberdade de religião, desde que não tivesse forma exterior de templo.
Quanto ao poder moderador, instituído pelo Art.98, dava de fato amplos poderes ao Imperador, mas exercido no âmbito do Conselho de Estado a ser sempre consultado antes, de modo a impedir decisões monocráticas, tão comuns hoje, e tomadas sem cerimônia por determinados ministros do STF até em situações em que estarariam visivelmente impedidos. Tais casos configuram decisões de cunho ditatorial para infelicidade geral da Nação.
Indo agora para o lado prático, ou seja, para o grau de respeito ao espírito e ao texto da Carta de 1824, vamos constatar que o poder moderador nunca foi usado para oprimir o Povo, mas sempre em sua defesa. Este ponto fundamental quase nunca é ressaltado. Refletiu também o trauma pessoal vivido por D. Pedro I ao ver seu pai submetido aos arbítrios das Cortes de Lisboa, e que acabou morrendo envenenado, como realmente parece ter sido.
Merecem registro as palavras de Evaristo da Veiga, em sua monumental biogradia do fundador do Império: “...não foi um príncipe de ordinária medida (...) e a Providência o tornou um instrumento poderoso de libertação, quer no Brasil, quer em Portugal. Se existimos como corpo de Nação livre, e se a nossa terra não foi retalhada em pequenas repúblicas inimigas, aonde só dominiasse a anarquia e o espírito militar, devemo-lo muito à resolução que tomou de ficar entre nós, de soltar o primeiro grito de nossa independência”.
O parágrafo anterior nos fornece um pano de fundo para avaliar o que veio depois de 1889. Felizmente, não fomos retalhados em pequenas repúblicas excludentes, mas prevaleceu o espírito militar nos seus piores efeitos socio-políticos. Aquele de querer dar ordem unidada à sociedade civil, como propunha Auguste Comte em sua cartilha positivista. Ela predominou no pen-samento e na ação de grande parte da elite militar e civil por muitas décadas.
Os militares, ao traírem, com o golpe e a indisciplina, o Espírito e as práticas institucionais da Carta de 1824, levaram o país a ser tomado por convulsões e golpes militares e civis que retardaram o ritmo de nosso desenvolvimento ao longo de muitas décadas. Fomos nos distanciando, cada vez mais, daquela situação, por volta de 1800, em que nossa renda real per capita estava próxima à dos EUA. Este fato infausto é também comprovado na obra organizada por Francis Fukuyma, intitulada “Ficando para trás Explicando a crescente distância entre a América Latina e Estados Unidos”.
Mas não foi só isso. O tempo de duração do desvio de rota já se prolongou por mais de um século sem que nossas instituições se reorientassem no entido de colocar o interesse público, ou melhor, o bem comum em primeiro lugar. A persisitente desigualdade, contra a qual a maior vitória se deu no século XIX, quando se pôs um ponto final à escravidão, não foi realmente um objetivo da república desde 1889.
Na verdade, um dos primeiros atos do recém-empossado presidente Deodoro da Fonseca, militar cuja mãe viúva com sete filhos e duas filhas se beneficiou de uma pensão dada por D. Pedro II, foi dobrar seu soldo mensal em relação ao que ganhava o imperador deposto. Não houve na república uma visão de longo prazo para resolver o problema da desigualdade. Na Carta de 1988, grupos de interesse conseguiram garantir seus privilégios, conforme denunciado em vários artigos bem fundamentados de Roberto Campos.
A ironia da História foi pinçada por Nabuco quando afirmou que os miliares derrubaram sua maior aliada na luta contra as oligarquias, que era a monarquia. De fato, a Princesa Isabel, em duas ocasiões, nas leis do Ventre Livre e Áurea, ela soube mexer os pauzinhos para atingir seu objetivo maior, que era pôr fim à escravidão. E conseguiu. No caso da Lei Áurea, quando Regente do Império, ela forçou a troca do Barão de Cotegipe, escravocrata, por João Alfredo, abolicionista, na presidência do Conselho de Ministros, para aprovar a lei.
Outro fato histórico extremamente relevante foi que as leis abolicionistas foram todas aprovadas por gabinetes conservadores. Entre seus membros, mesmo com a presença de escavrocatas, havia espaço para que o interesse público prevalecesse. Quase nada disso prevaleceu ao longo da história da república. Ainda recentemente, a câmara federal queria restabelecer o pedido de licença a si mesma para processar deputados por falcatruas. Na verdade, seria a farra com o dinheiro público sem ter que prestar contas a ninguém.
Certamente não é assim que se combate a desigualdade. Pelo contrário, iria agravá-la. Não poderia haver prova mais eloquente do descaso com a coisa pública, vale dizer, com a defesa do que seria uma república. Não emplacou em 1889, e nem mesmo hoje. As oligarquias continuam a comemorar sua vitória.
Nota: Digite no Google “Dois minutos com Gastão Reis: Inversão de valores”, ou pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=CSpng1r_oRA
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