Edição: sábado, 01 de novembro de 2025

José Luiz Alquéres

COLUNISTA

José Luiz Alquéresz

LIMITES DA RAZÃO E OS PERIGOS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL


José Luiz Alquéres Membro Titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)

Fala-se muito dos efeitos disruptivos do uso generalizado da inteligência artificial (IA) sobre os sistemas produtivos sejam eles de bens ou de serviços e também sobre diversos campos da produção intelectual, como o ensino, o jornalismo e a literatura. Mencionam-se, sobretudo, possíveis impactos sobre o aumento do desemprego e um certo empobrecimento da criatividade humana.

Essas, porém, não me parecem ser as questões mais perigosas associadas à IA. Desde o Iluminismo, no século XVIII, o ser humano vem depositando na Razão uma confiança quase absoluta, acreditando que, por meio dela, seria capaz de dominar a natureza e compreender todos os mistérios do universo. Essa fé racionalista, embora tenha impulsionado o progresso científico e tecnológico, trouxe também uma perigosa ilusão de autossuficiência.

Immanuel Kant, em sua Crítica da Razão Pura (1781), já advertia para os limites do conhecimento humano ao distinguir entre o “fenômeno”, aquilo que podemos conhecer, e o “númeno”, a realidade em si, que permanece inacessível à experiência sensível. Rousseau, por sua vez, alertava que o avanço técnico e científico não necessariamente tornava o homem mais virtuoso. E, como lembraria Horkheimer e Adorno, em Dialética do Esclarecimento (1944), o mesmo racionalismo que libertou o homem do mito também engendrou novas formas de dominação a razão transformada em instrumento de poder.

Albert Einstein, ao conciliar o espírito científico com o espanto filosófico, reconheceu esse dilema: “O mais belo da existência é a experiência do mistério. Ele é a fonte da ciência e da arte.” O cientista, para ele, deveria conservar o assombro diante daquilo que não se explica, sob pena de reduzir o universo à mera equação. Com o advento do positivismo de Auguste Comte, em meados do século XIX, e do materialismo histórico de Karl Marx, consolidou-se uma visão segundo a qual os fenômenos sociais e econômicos poderiam ser compreendidos e controlados por leis científicas. Ambos acreditavam na possibilidade de uma verdade única e racional, aplicada ao mundo humano. No entanto, a própria história com suas guerras, totalitarismos e crises morais desmentiu essa pretensão. O racionalismo absoluto, quando desligado da ética e da espiritualidade, mostrou-se tão destrutivo quanto o
obscurantismo que pretendia combater.

Hoje, a humanidade parece reviver essa mesma ilusão sob nova forma: a da inteligência artificial. O Google, outrora símbolo da busca autônoma pelo conhecimento, foi superado por sistemas de IA como o ChatGPT que prometem não apenas responder perguntas, mas interpretar, prever e até decidir. A sedução do saber imediato torna-se irresistível: a informação deixa de ser descoberta para ser entregue, pronta e formatada, ao toque de um comando.

Essa transferência progressiva de confiança da razão humana para o cálculo algorítmico configura o que o filósofo Jürgen Habermas denominou “colonização do mundo da vida” o processo pelo qual a lógica instrumental e sistêmica invade as esferas da cultura, da linguagem e da moral. Quando algoritmos passam a ditar decisões políticas, médicas e econômicas, estamos diante de uma forma inédita de poder: não mais o poder do homem sobre o homem, mas o poder da técnica sobre o humano.

Entretanto, há dimensões da experiência humana que a máquina não apreende e talvez jamais apreenda. O filósofo Martin Heidegger, em A Questão da Técnica (1954), já via na tecnociência moderna uma ameaça à essência do ser: o risco de transformar tudo, inclusive o próprio homem, em mero “estoque” (Bestand) de energia e dados. A IA, ao converter emoções, intuições e relações em padrões estatísticos, ameaça dissolver aquilo que nos torna singulares o mistério da consciência e a capacidade de dar sentido ao erro, ao sofrimento e à criação.

A história da literatura antecipou essa angústia. Em Frankenstein (1820), Mary Shelley colocou na boca da Criatura a frase dirigida ao Dr. Frankenstein: “Você não vai me matar porque é o meu criador, mas hoje eu sou o seu senhor.” É a alegoria perfeita do homem que, ao pretender ser Deus, gera um ser que escapa ao seu controle. Adão e Eva, de certa forma, fizeram o mesmo. Hoje, ao programar máquinas capazes de aprender e decidir sozinhas, corremos o risco de reviver o mesmo mito: o da criatura que se volta contra o criador.

A inteligência artificial é, sem dúvida, uma das mais extraordinárias expressões do engenho humano. Mas talvez seja também o seu maior teste moral. Yuval Noah Harari, em Homo Deus (2015), observa que o poder computacional pode transformar o homem em “deus” no controle da vida mas um deus sem compaixão e sem propósito. A questão não é mais o que as máquinas podem fazer, mas o que nós, humanos, devemos permitir que façam.

O desafio, portanto, é relembrar que o progresso técnico não substitui o progresso moral. A sabedoria, diferentemente do conhecimento, não é acumulada por algoritmos, mas conquistada por experiência, reflexão e empatia. Como advertia Blaise Pascal, “o coração tem razões que a própria razão desconhece”.

Se não tomarmos cuidado, poderemos ouvir não em ficção, mas na realidade um megacomputador repetir a advertência de Shelley. E talvez seja tarde demais para responder.

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