COLUNISTA
Ronaldo Fiani
Há sinais claros de uma profunda crise do modelo de regulação de energia elétrica no Brasil: as empresas Amazonas Energia e Light (do Rio de Janeiro) estão em crise financeira; este ano, tivemos apagões em São Paulo, Acre e Rondônia; no ano passado foram registrados nada menos do que 42 apagões. Enquanto escrevo este artigo, mais um apagão acabou de acontecer em bairros de São Paulo e Guarulhos. Há algo muito errado com o sistema de energia elétrica brasileiro, e uma parte dos problemas, sem dúvida alguma, está no segmento de distribuição, aquele que leva energia para a ponta final de consumo, quer seja para residências, quer seja para empresas.
Os problemas no segmento de distribuição têm sua origem no desenho institucional da regulação em nosso país. A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), a agência que responde pelo setor elétrico é responsável por regular sozinha em Brasília o número impressionante de 53 distribuidoras de energia elétrica, como a Light e a Enel aqui no Rio de Janeiro. O problema começa exatamente na reunião de todas as distribuidoras sob o comando de uma única agência federal.
Para compreender as razões desta concentração de atribuições na ANEEL ser a raiz dos problemas na distribuição de energia, temos de conhecer a origem do modelo de regulação por agência autônoma, como é o caso da ANEEL, porque este modelo, na verdade, é uma relativa novidade: até os anos 1980, o modelo de agências reguladoras autônomas somente existia nos Estados Unidos. Os demais países, tanto os desenvolvidos na Europa quanto os países em desenvolvimento (como o Brasil a partir dos anos 1960) privilegiavam o modelo com empresas estatais. Para entender então a natureza deste modelo de agências reguladora, precisamos perguntar: como surgiu o modelo norte-americano que se difundiu pelo mundo, inclusive o Brasil?
O modelo de agência reguladora autônoma surgiu a partir de 1860 no Meio-Oeste dos Estados Unidos, para arbitrar um conflito: o conflito entre os agricultores que plantavam seus grãos naquela região norte-americana e as ferrovias, que levavam seus produtos para os mercados consumidores. Estas ferrovias tinham poder de monopólio, pois somente um ramal chegava até os fazendeiros, e como eles precisavam dos trens para transportar seus produtos, as ferrovias tinham um notável poder de mercado, e cobravam tarifas típicas de monopólio.
Os estados do Meio-Oeste dos Estados Unidos aprovaram então leis em que as assembleias estaduais impunham tarifas às ferrovias, mas estas leis foram derrubadas nas legislaturas seguintes, com a eleição de candidatos patrocinados pelo poder econômico das ferrovias. Era preciso criar um órgão de governo que tivesse autonomia em relação a mudanças de governo, o que somente seria possível se seus diretores tivessem mandatos com duração fixa.
Desta forma, surgiu e vingou em New Hampshire uma ideia original: a criação em 1844 de uma comissão estadual em que os seus dirigentes tinham mandato com duração fixa, e assim não podiam ser demitidos segundo a vontade do governante do momento. Foi a primeira agência reguladora autônoma do mundo. Esta comissão era responsável apenas pela regulação da segurança nas ferrovias, mas em 1873 o estado de Illinois copiou o modelo e criou a primeira agência autônoma para regular as tarifas ferroviárias.
O modelo se espalhou para outros estados do Meio-Oeste, até que em 1887 o Congresso dos Estados Unidos criou a Interstate Commerce Commission (em inglês, Comissão Interestadual de Comércio), a primeira agência reguladora autônoma em nível federal, responsável pela regulação das tarifas ferroviárias no comércio entre estados norte-americanos. Mas, em todo este processo, o propósito das agências reguladoras sempre foi arbitrar os conflitos motivados pelos interesses das empresas e das populações atendidas.
O importante a se notar aqui é que o sistema de agências reguladoras dos Estados Unidos, que serviu de modelo institucional para agências reguladoras mundo afora, inclusive no Brasil, foi criado de baixo para cima, do nível estadual para o nível federal. Há uma boa razão para isso: como as agências reguladoras são essencialmente árbitros na disputa entre a sociedade e as empresas prestadoras de serviços públicos, estas agências precisam conhecer as características e as peculiaridades das partes afetadas, especialmente as comunidades com dificuldades, uma vez que serviços públicos são essenciais para a vida moderna.
Isto não acontece quando uma única agência reguladora como a ANEEL é responsável por 53 distribuidoras, cujas áreas de atuação se encontram em sua esmagadora maioria dentro de um único estado e, portanto, passíveis de regulação por agências estaduais. A partir da difusão do modelo de agência reguladora nos anos 1980-1990, foram criadas no Brasil agências reguladoras federais, concentrando atribuições que deveriam ter sido distribuídas entre os estados, de forma a aproximar a regulação das partes afetadas e oferecer soluções pensadas para as peculiaridades de cada região, como no modelo norte-americano.
Em vez disto, temos uma única agência que concentra poder, mas não conhece as diferenças entre as regiões do país, adotando a mesma solução padronizada, seja em São Paulo ou no Acre. Não é de se surpreender que os apagões se sucedam, na melhor ilustração do ditado norte-americano de que uma roupa de tamanho único não serve em ninguém (one size fits all fits nobody).
Os problemas vão se agravar.
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