COLUNISTA
Ronaldo Fiani
No artigo do dia 9 de setembro no Diário de Petrópolis apontei os graves equívocos do desenho do modelo de regulação da distribuição de energia elétrica no país (A Crise do Modelo de Regulação de Energia Elétrica no Brasil, disponível em: https://diariodepetropolis.com.br/integra/colunista-ronaldo-fiani-10060 ). Naquele artigo, destacava como o desenho institucional da regulação da distribuição de energia elétrica impede uma regulação eficaz do setor, possibilitando o surgimento de crises.
No artigo desta semana abordo um dos principais fatores por trás da crise que já se instalou no setor de distribuição de energia elétrica no Brasil, e que a regulação, com seu desenho institucional equivocado não tem dado conta. Como é sabido, pode-se dividir o fornecimento de energia elétrica em geração (quando a energia elétrica é produzida em centrais hidrelétricas, termoelétricas etc.), transmissão (quando a eletricidade é transportada em torres de alta tensão para os centros de consumo) e distribuição (quando, após ter sua tensão reduzida, a eletricidade é entregue aos consumidores, tais como residências, empresas, hospitais etc.).
A preocupação com o setor de energia elétrica usualmente se concentra na geração, em consequências da crise na geração hídrica em 2001, resultado da falta de investimentos em geração combinada com a estiagem que ocorreu. Isso faz com que as atenções se concentrem a cada ano nos índices pluviométricos nas regiões com barragens hidrelétricas, com pouca atenção sendo dada às questões da distribuição de energia. Independentemente de problemas de geração causados por secas, a distribuição vem dando sinais claros de alarme, que não vêm recebendo a devida atenção.
Estamos vendo dois sinais claros na crise da Light no Rio de Janeiro e da Amazonas Energia. A Light enfrenta dívidas de R$ 8,3 bilhões a vencer nos próximos dois anos ( https://epocanegocios.globo.com/brasil/noticia/2023/02/solucao-para-crises-na-light-e-amazonas-energia-desafia-novo-governo.ghtml ), e a dívida da Amazonas Energia alcançou no ano passado R$ 9,3 bilhões ( https://www.infomoney.com.br/politica/ministerio-de-minas-e-energia-recomenda-troca-de-concessionario-no-amazonas/ ). São valores impressionantes, que refletem uma profunda crise no setor.
Embora sempre seja possível atribuir endividamento maciço de empresas a problemas de gestão, é óbvio que quando duas empresas distribuidoras de energia elétrica reguladas por agência reguladora (a ANEEL) apresentam problemas simultaneamente, as causas não se limitam apenas a deficiências na sua capacidade gerencial. Os problemas têm raízes profundas, e podem ser encontrados na política tarifária do setor equivocada, que o desenho institucional da regulação não permitiu que a agência reguladora percebesse.
Em primeiro lugar, temos o furto de energia, especialmente na forma de ligações clandestinas, chamado no jargão do setor de perdas não técnicas. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, as perdas não técnicas alcançam aproximadamente 16% da energia fornecida ao Rio de Janeiro, quase três vezes a média nacional.
O leitor pode se sentir tentado a considerar este problema apenas um caso de polícia, mas esta seria uma simplificação do problema. Sem dúvida, a criminalidade urbana participa do problema, mas ele possui raízes econômicas. Isto pode ser facilmente demonstrado pela nível crescente de inadimplência dos consumidores de energia elétrica. Em 2022, a Light enfrentou perdas por inadimplência em torno de R$ 1 bilhão de reais.
Os problemas de inadimplemento e furto de energia começaram na verdade nos anos 1990, com a privatização das distribuidoras de energia elétrica. Naquele momento, as tarifas mais reduzidas para os consumidores de baixa renda foram substituídas por tarifas sociais, às quais apenas um pequeno número de consumidores tinha direito, número este que foi deliberadamente restringido pelas próprias empresas distribuidoras, que com as privatizações passaram a poder determinar quem tinha e quem não tinha direito a estas tarifas (antes era política governamental).
As distribuidoras adotaram então critérios muito rígidos para um consumidor ser beneficiado por essas tarifas, de forma a limitar os beneficiários. Em consequência, no ano de 1995 as tarifas de energia elétrica dos consumidores de baixa renda que foram excluídos das tarifas mais reduzidas aumentaram mais de 100% acima do IPCA, o índice nacional de preços ao consumidor amplo.
Assim começaram o furto de energia e a inadimplência, agravados pela redução de atividade econômica durante a pandemia e os juros elevados, pois energia elétrica é um item indispensável da vida moderna, e as pessoas não ficaram passivas, olhando sua energia ser cortada. Foi esta elevação de tarifas nos anos 1990 que também abriu caminho para o crime organizado se instalar no negócio de ligações clandestinas de eletricidade.
Ocorre que o problema vai aumentar, pois ele está se transformando em uma bola de neve: como há perda de receita pelas ligações clandestinas e a inadimplência, as tarifas são aumentadas para compensar as perdas, fazendo quem está em dia pagar por quem não está. Com isso, o pagamento vai se tornando inviável para mais usuários do serviço, que são expulsos para a clandestinidade, ou se tornam inadimplentes, o que torna a elevar as tarifas, em um círculo vicioso que não para de crescer.
A situação é muito preocupante.
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