COLUNISTA
Assim como os Estados Unidos têm agido com as empresas chineses (tanto na gestão Trump como Biden), a China tem adotado medidas que atingem empresas de alta tecnologia norte-americanas (veja o artigo do Financial Times, China Blocks Use of Intel and AMD Chips in Government Computers, publicado em 24/03/2024 e disponível em: https://www.ft.com/content/7bf0f79b-dea7-49fa-8253-f678d5acd64a ). O artigo informa que o Ministério da Indústria e Tecnologia da Informação chinês publicou de forma discreta um novo guia para as compras do governo (as chamadas compras públicas), em 26 de dezembro do ano passado. Naquele guia, o governo chinês orienta os órgãos públicos (excetuando apenas os órgão municipais) a não comprar computadores com microcircuitos (os chamados chips) produzidos pela Intel e pela AMD norte-americanas, assim como máquinas que operem com o sistema operacional Windows da Microsoft e bases de dados produzidas por empresas estrangeiras.
Trata-se de um revés importante para estas empresas. Segundo dados disponíveis, o mercado chinês é o maior mercado da Intel, tendo representado 27% de suas vendas em 2023, e 15% das vendas da AMD no mesmo ano. No caso da Microsoft, apesar da pequena participação do mercado chinês na receita da empresa (apenas de 1,5%, segundo declarações do presidente da empresa ao Congresso dos Estados Unidos), a China tem uma importância estratégica: a maior rede de centros de pesquisa da Microsoft se localizar na Ásia, o chamado Grupo de Pesquisa e Desenvolvimento Ásia-Pacífico, uma rede de pesquisa que, além de Tóquio e Taipé, também envolve cidades chinesas como Beijing, Xangai e Shenzhen.
O governo chinês informou que os microcircuitos vetados em compras públicas não eram seguros e confiáveis, e publicou uma lista de produtos que atenderiam aos seus critérios, entre eles os produtos da empresa chinesa Huawei, que foi banida dos Estados Unidos e, assim, perdeu o acesso ao mercado norte-americano, o maior do mundo, e que agora ganha um mercado praticamente cativo com as compras do governo chinês.
Da mesma forma, em consonância com a política adotada para os órgãos do governo, a agência de controle das empresas estatais chinesas, a Comissão de Administração e Supervisão de Ativos informou às empresas estatais da China que elas devem completar a transição para fornecedores nacionais até 2027.
Por que isto?
A resposta mais imediata, e mais simplista, é que se trata apenas de retaliação contra as medidas adotadas pelo governo norte-americano, que baniram empresas chinesas como a Huawei do seu mercado. Na verdade, é bem mais do que isso. As compras públicas sempre foram uma forma importante de estimular a indústria doméstica, ao se privilegiar as empresas locais e, portanto, sempre foram um tema controverso na negociação de acordos comerciais.
Neste sentido, o Acordo de Compras Governamentais (GPA) da Organização Mundial do Comércio (OMC) pretende garantir a aplicação do princípio do livre comércio às compras dos governos, mas, até o momento, nem todos os países da OMC aderiram ao acordo, que inclui apenas a União Europeia, os Estados Unidos, a Austrália, o Japão, o Canadá, a Islândia e a Nova Zelândia ( https://www.wto.org/english/tratop_e/gproc_e/gproc_map_e.htm) .
A reduzida adesão ao acordo, que inclui essencialmente apenas os países mais desenvolvidos, se explica porque, ao reservar as compras públicas para as empresas locais, assegura-se um mercado que pode ter dimensões importantes, dependendo do tamanho do setor público. Isso não apenas pode garantir vendas que assegurem às empresas locais uma receita suficiente para cobrir seus investimentos iniciais, mas pode garantir um volume de produção onde estas empresas realizem economias de escala e, com isto, consigam atingir preços internacionalmente competitivos.
Mas o que são economias de escala? Economias de escala são reduções no custo por unidade de produto, obtidas à medida que se aumenta a quantidade produzida. Por exemplo: imagine que para produzir microcircuitos (os chips) são necessários investimentos em pesquisa e desenvolvimento, máquinas, equipamentos e instalações no valor total de 10 milhões de dólares (este valor é totalmente arbitrário, usado apenas para ilustrar o funcionamento das economias de escala). Vamos supor que este investimento permita produzir até 30 mil chips.
Se forem produzidos 10 mil chips, o rateio apenas do custo com os investimentos pelos chips (há outros custos também, mas vamos desconsiderar para simplificar o exemplo) vai fazer com que cada chip custe, no mínimo, mil dólares. Se forem produzidos 20 mil chips, o custo de cada chip cai para 500 dólares. Se o preço internacional for de 500 dólares, somente será possível ser competitivo internacionalmente produzindo 20 mil chips. Desta maneira, as compras de um governo que seja grande podem ajudar a tornar as empresas competitivas, realizando economias de escala. Além disso, os lucros resultantes vão ajudar as empresas a financiarem o projeto e desenvolvimento de novos produtos.
Na semana passada, escrevi que livre comércio não é um dogma, mas a validade de sua aplicação depende das características de cada setor da economia. O uso das aquisições governamentais como instrumento de estímulo e competição entre as indústrias de tecnologia de ponta dos Estados Unidos e da China ilustra este fato econômico básico, esquecido com tanta frequência no nosso país.
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