COLUNISTA
Ronaldo Fiani
Em artigos recentes sobre a revolução digital, tenho apontado a tendência de concentração dos lucros nos segmentos produtores das novas tecnologias, em detrimento dos setores que são apenas usuários. No artigo desta semana e no próximo, veremos não apenas como o comércio eletrônico está ajudando a promover esta concentração de lucros, mas também como ele está alterando a relação entre a produção industrial e a comercialização, uma relação que tinha sido estabelecida no início do século XX, com o advento da produção em massa.
A relação entre a produção industrial e a comercialização foi estudada inicialmente por um dos economistas mais brilhantes do século XX, o húngaro naturalizado britânico Nicholas Kaldor (1908-1986). Um fator fundamental na alteração das relações entre comércio e indústria no início do século XX foi a produção industrial em massa, isto é, a produção de bens em grande escala propiciada pela introdução das linhas de montagem, em que o produto percorre as várias etapas de sua produção viajando sobre uma esteira (o leitor deve lembrar de Charlie Chaplin no filme Tempos Modernos). A esteira da linha de produção era movida por energia elétrica, o que acelerou o processo de montagem, reduziu dramaticamente o tempo de produção e aumentou muito a produtividade.
Este enorme aumento de produtividade alterou a relação entre a indústria e o comércio, que tinha sido estabelecida no final do século XIX. No final do século XIX, quando ainda não existia a produção em massa, a indústria dependia de atacadistas e revendedores para conseguir vender seu produto. Como explica Kaldor em seu famoso artigo The Economic Aspects of Advertising (“Os Aspectos Econômicos da Publicidade”, publicado no The Review of Economic Studies, Volume 18, n. 1, 1950, pp. 127), antes da produção em massa, por ter uma escala de produção menor que a dos atacadistas, a indústria produzia em função de ordens de compra recebidas destes atacadistas. A indústria dependia então do comércio para alcançar seus consumidores e, dado o maior poder de barganha do comércio na negociação com a indústria, ele se apropriava da maior parcela dos lucros.
Com a produção em massa no início do século, esta relação se alterou radicalmente. A indústria passou a dispor de um enorme volume de produção para vender, o que lhe permitiu alcançar vários mercados ao mesmo tempo, eliminando a sua dependência de alguns poucos atacadistas. Além disso, dispondo de um elevado volume de produtos para vender, tendo o potencial assim de atender vários mercados, a indústria começou a buscar diretamente seus consumidores com campanhas publicitárias, empregando atacadistas e varejistas apenas como intermediários em cada mercado, o que também aumentou o poder de barganha da indústria em relação ao comércio.
Mas o investimento em publicidade da própria indústria teve outras consequências, que colaboraram no mesmo sentido de aumentar sua lucratividade em relação à comercialização. Em primeiro lugar, o investimento em publicidade pelas indústrias estimulou a preferência dos consumidores por determinadas marcas, o que não existia antes do advento da produção em massa. Na medida em que os consumidores desenvolviam preferências por marcas específicas, as indústrias que produziam estas marcas podiam cobrar preços um pouco mais elevados, sem com isto perder vendas significativas, o que expandiu seus lucros.
Por último, era preciso fazer um investimento mínimo significativo em publicidade para alcançar os consumidores. Ou seja, sem um determinado volume mínimo de anúncios em grandes canais de divulgação (televisão, rádio, jornais etc.), o investimento em publicidade não surte efeito. Isto significa que pequenas empresas tinham maior dificuldade para fazer este investimento, pois era necessário produzir e vender muito para diluir este investimento mínimo em publicidade, de forma que ele não pesasse no custo do produto, elevando os preços e comprometendo as vendas.
A razão disto é que este investimento mínimo em publicidade, necessário para que uma indústria com produção em massa alcance um mercado constitui um custo fixo, isto é, um custo que a empresa tem de incorrer, independentemente de ela produzir pouco ou muito. Assim, por exemplo, se o investimento mínimo em publicidade para alcançar mercados compatíveis com a produção em massa de uma indústria for de 20 milhões, o peso deste custo no produto será de R$ 100 por unidade se ela produzir 200 mil unidades, e de R$ 50 se ela produzir 400 mil. Isto dificultava que uma empresa pequena, ou mesmo uma empresa média atingisse uma produção lucrativa. Assim, os custos fixos de publicidade e a escala mínima de investimento nesta atividade reforçavam aquilo que os economistas chamam de concentração do mercado, isto é, a existência de apenas um pequeno número de grandes empresas.
Em razão de tudo isto, o poder de barganha da indústria aumentou ainda mais em relação a atacadistas dispersos em mercados regionais, e os lucros da indústria cresceram significativamente às custas dos lucros do comércio.
Mas, com as novas tecnologias digitais, esta situação está se invertendo novamente. Este será o assunto do próximo artigo.
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