COLUNISTA
Ronaldo Fiani
Infelizmente, além dos preconceitos pessoais nocivos que muitas vezes carregamos no nosso quotidiano, algumas vezes somos também influenciados por preconceitos herdados da nossa formação profissional, e que são não apenas disseminados em salas de aula, mas podem ser encontrados até mesmo nos manuais básicos que ensinam os princípios fundamentais das nossas profissões.
Um caso típico é o preconceito que os economistas têm em relação às artes. Não é raro observar nos economistas uma atitude de desdém profissional em relação às atividades artísticas, como se elas não estivessem sujeitas a princípios econômicos, constituindo um caso à parte que, por sua natureza extravagante não estaria sujeito à análise econômica.
Este tipo de preconceito foi muito estimulado pela tese do economista norte-americano William J. Baumol (1922-2017), de que algumas atividades, em particular a produção artística, sofreriam de uma “doença dos custos”. O argumento de Baumol é que nestas atividades, ao contrário da maioria das demais atividades econômicas, não há como aumentar a produtividade, e assim elas vão se tornando cada vez mais caras com o passar do tempo.
Vamos entender o argumento de Baumol, que é simples. Considere a produção de sapatos. Se compararmos a produção artesanal com a produção industrial moderna, veremos que a primeira gasta muito menos dinheiro para produzir sapatos do que a última, pois as ferramentas e instrumentos de um artesão são muito mais simples e baratos do que os de uma fábrica moderna, que emprega, por exemplo, software para o desenho do calçado, programas CAD para elaborar os modelos, máquinas de corte automatizadas etc.
Contudo, embora a produção industrial demande um investimento muito maior do que a produção artesanal, o trabalho na produção industrial resulta em uma quantidade de sapatos muito mais elevada, em proporção muito maior do que o aumento no capital investido. Assim, apesar do maior investimento na produção industrial, o custo de cada sapato é menor na produção industrial do que na produção artesanal, porque a produtividade na produção industrial é muito maior. O segredo da redução de custos, assim, é o aumento da produtividade. Este é o fundamento da sociedade de consumo de massa, que se estabeleceu desde o começo do século passado.
O argumento de Baumol é que estes ganhos de produtividade, que acontecem principalmente pela introdução de máquinas que aceleram a produção, não se verifica em certas atividades, como a atividade artística. Parafraseando Baumol, considere uma peça de Mozart: ela é executada da mesma forma desde que foi composta no século XVIII. Não há como aumentar a produtividade, “acelerando” a produção da música, como se faz, por exemplo, com sapatos.
Esta afirmação parece um tanto evidente pois, afinal, as peças de Mozart, Bach, Beethoven, Beatles, Rolling Stones, Chico Buarque, Milton Nascimento e Caetano Veloso serão sempre executadas da mesma forma, apenas com pequenas variações (as chamadas “versões”). Mas isto não significa que a produtividade destas peças não aumentou e não vai continuar aumentando. O problema está na definição do que é o “produto” destas atividades artísticas!
Com efeito, no século XVIII só havia uma forma de produzir a música de Mozart: em concertos nos salões da nobreza, iluminados por velas. O século XX ampliou a produção da música de Mozart: agora ela podia ser gravada e divulgada em discos, filmes e programas de rádio e de televisão. Mas estas possibilidades de produção ainda eram limitadas, pois demandavam investimentos em estúdios, em equipamentos de filmagem e gravação ao vivo.
Com a indústria digital, tudo mudou. Agora é possível armazenar vídeos e sons e permitir o acesso em escalas nunca imaginadas, disponibilizando os produtos culturais para milhões ao mesmo tempo. Além disso, é possível combinar e recombinar imagens e sons, gerando novos produtos a partir de outros produtos, ampliando a produtividade e reduzindo dramaticamente o custo de cada produto. Estamos no limiar de um novo mundo que mal conseguimos avaliar: cabe aos economistas antecipar as leis econômicas que vão reger este novo mundo, sem o preconceito de uma “doença dos custos”.
A coluna entra em férias agora, devendo retornar na segunda semana de janeiro. Aproveito para desejar aos meus leitores e suas famílias Boas Festas!
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