COLUNISTA
Ronaldo Fiani
Vimos no artigo da semana passada que Trump possui uma estratégia econômica, apesar de seu comportamento aparentemente errático e de sua postura agressiva e desafiadora. Esta estratégia é ousada, e resulta de seu diagnóstico do problema fundamental da economia dos Estados Unidos: sua desindustrialização, que teria reduzido muito o dinamismo da economia norte-americana. Nesta estratégia, as tarifas desempenham um papel central (daí sua afirmação de que ele “ama a palavra tarifa”) na tentativa de estimular o retorno da indústria, que migrou dos Estados Unidos para a Ásia, em particular a China.
Caso Trump tenha sucesso com suas tarifas, a proporção dos investimentos no produto interno bruto (o PIB, a quantidade total de bens e serviços produzidos em um país durante o ano) dos Estados Unidos deve aumentar. Uma maior proporção de investimentos no PIB gera um crescimento mais acelerado nos empregos e na renda, pois expande as indústrias, o comércio e os serviços, além de modernizar empresas e infraestrutura, elevando a produtividade, o que aumenta salários e lucros. Trata-se de algo de que Trump tem grande necessidade, pois sua base eleitoral foi constituída majoritariamente por trabalhadores norte-americanos, que têm visto seus empregos desaparecerem, ou se tornarem precários nas duas últimas décadas.
Com efeito, a elevação da proporção do investimento no PIB dos Estados Unidos é necessária: em março de 2023 o investimento representava apenas 20,7% do PIB norte-americano, contra 26,6% do PIB do Japão em setembro de 2024, 31,1% do PIB da Coréia do Sul, 34,7% do PIB da Índia no mesmo mês e 41,1% do PIB da China em 2023, o que parece confirmar que o dinamismo da economia moderna se deslocou para a Ásia.
Neste aspecto, Trump parece aparentemente estar tendo algum sucesso. Até o momento, várias empresas anunciaram planos de investimento nos Estados Unidos: a Apple anunciou investimentos na produção de servidores para inteligência artificial, a farmacêutica Eli Lilly pretende dobrar seus investimentos em produção de medicamentos, a Hyundai pretende produzir veículos híbridos na sua fábrica na Geórgia e a Volkswagen está levantando locais para ampliar sua produção norte-americana. Um dos anúncios mais comentados foi o da empresa taiwanesa TSMC, que anunciou que vai investir 100 bilhões de dólares na produção de chips nos Estados Unidos, causando preocupação em Taiwan, seu país de origem.
Mesmo que estes planos de investimento se realizem, e é necessário aguardar para ver se esses planos de investimento vão se concretizar (e em que medida), uma estratégia de desenvolvimento industrial tem um efeito inflacionário importante. Este efeito foi identificado originalmente por um dos economistas com contribuições mais interessantes no século XX: Albert O. Hirschman (1915-2012). A história pessoal de Hirschman por si já é extraordinária: nascido na Alemanha, participou ainda no colégio da resistência a Adolf Hitler. Ameaçado, fugiu para a França e ajudou vários refugiados do nazismo a fugirem do continente, como a filósofa Hannah Arendt (1906-1975). Como economista, Hischman publicou vários livros importantes, colaborou com o Plano Marshall para a reconstrução da Europa no final da guerra, e foi assessor do governo da Colômbia.
Entre outras contribuições importantes, Hirschman identificou que processos de industrialização envolvem o que é chamado de encadeamentos. Estes encadeamentos resultam do fato de que, para que uma indústria funcione, é preciso que outras indústrias e setores forneçam insumos nas etapas anteriores da produção, ou contribuam para o produto da indústria nas etapas seguintes, até a venda do produto acabado. Quando uma indústria é construída em um país em desenvolvimento, ela pressiona estes encadeamentos simplesmente porque, muitas vezes, as etapas anteriores ou seguintes do processo produtivo simplesmente não existem. Por exemplo, ao se construir uma indústria automobilística, pode ser que alguns fornecedores ainda não estejam disponíveis, como os produtores de determinados equipamentos elétricos, ou que não haja empresas de transporte com capacidade suficiente para levar os automóveis para os revendedores.
O mesmo problema acontece em um país que se desindustrializou. Quando uma indústria fecha e se transfere para outro país, como aconteceu com várias indústrias nos Estados Unidos e mundo afora, é comum que vários fornecedores ou firmas de apoio locais também fechem, pela queda nas suas receitas. Assim, um processo de reconstrução industrial enfrenta o mesmo problema que um processo de industrialização em um país em desenvolvimento: a falta de determinados encadeamentos. Esta falta gera gargalos no processo produtivo, que acabam por pressionar os preços nestas etapas e, assim, provocar inflação.
Portanto, se o processo de reindustrialização de Donald Trump for bem-sucedido, ele deve gerar ainda mais inflação, além daquela que naturalmente surge quando tarifas tornam mais caros produtos importados que antes eram baratos. Hirschman achava que esta inflação teria um papel positivo, pois aumentaria os lucros nas etapas que estavam faltando, sinalizando onde era necessário investir. Na verdade, a inflação resultante dos processos de industrialização acabou fortalecendo a oposição na sociedade aos projetos de desenvolvimento, e ajudou a derrubá-los na América Latina. Não é um risco pequeno.
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