COLUNISTA
Ronaldo Fiani
Espera-se que as tarifas adotadas pelo governo norte-americano impactem de forma adversa as cadeias produtivas globais, que cresceram desde os anos 1990, concentrando-se especialmente na Ásia e em particular na China. A brusca mudança nos custos ao longo das cadeias produtivas e o clima geral de incerteza devem reduzir a taxa de crescimento do comércio mundial, e repercutir negativamente no crescimento econômico de vários países,
inclusive dos Estados Unidos. Algumas projeções estimam o crescimento do produto interno bruto norte-americano entre 1,5% a 0,6% este ano, e a Goldman Sachs aumentou sua estimativa das chances de uma recessão de 20% para 35% ( https://valor.globo.com/mundo/noticia/2025/04/03/economistas-cortam-previses-para-o-pib-dos-eua-aps-anncio-das-novas-tarifas-de-trump.ghtml ).
Este quadro geral indicaria, em princípio, baixo crescimento ou, no máximo, a possibilidade de uma recessão (um pequeno decréscimo no atividade econômica). Mas há um outro fator que pode agravar seriamente este quadro: o risco de os Estados Unidos sofrerem uma deflação de ativos. Uma deflação de ativos acontece quando um grande volume de ativos diversos sofre uma perda abrupta de valor. É o caso, por exemplo, quando temos quedas significativas acontecendo simultaneamente nas cotações das ações, nos preços do títulos públicos, nos valores de propriedades imobiliárias de luxo, nos títulos emitidos por grandes empresas privadas etc.
Esta perda de valor expressiva e repentina tem consequências graves para a economia, por duas razões. Em primeiro lugar, estes ativos frequentemente fazem parte do balanço de empresas e bancos, compondo o seu ativo. Quando estes ativos perdem muito valor, isto gera um desequilíbrio entre os ativos e os passivos das empresas, colocando algumas delas em dificuldades, ou, na melhor das hipóteses, fazendo com que elas tenham que quitar débitos (parte do seu passivo) para reequilibrar ativo e passivo.
Para isto, estas empresas frequentemente cancelam investimentos, ou até mesmo reduzem a produção, o que leva outras empresas a enfrentarem quedas nas suas receitas, e com isso começarem a enfrentar também dificuldades. O desequilíbrio entre passivos e ativos também afeta os bancos, pois a deflação de ativos reduz o valor das garantias oferecidas pelos empréstimos. Em consequência, a resposta dos bancos é reduzir a oferta de crédito para diminuir sua exposição ao risco. Isto torna a causar problemas a empresas e a outros bancos, especialmente quando eles dependem destes empréstimos para continuar operando normalmente.
Em segundo lugar, a própria perda no valor destes ativos pode deflagrar uma fuga em massa deles, com empresas e bancos se desfazendo dos ativos que estão perdendo valor em um processo de liquidação, que atua como um efeito dominó, reduzindo ainda mais o valor destes ativos e levando a uma nova liquidação de ativos. Esta espiral descendente tende a aumentar ainda mais o desequilíbrio entre ativos e passivos que acabamos de ver, agravando a queda na atividade econômica.
Mas o que causaria esta perda súbita e expressiva do valor, ou seja, uma deflação de ativos? Inicialmente, é preciso que os ativos estejam, de uma forma geral, inflacionados, ou seja, com valores maiores do que aqueles que seriam justificados pelo crescimento da renda da economia, pois é este crescimento da renda que sustenta o aumento na demanda por estes ativos e, por consequência, o aumento do seu valor. Uma vez que os ativos estejam sobrevalorizados, eles se tornam suscetíveis a uma deflação, caso a demanda por eles não se sustente mais. Com efeito, existem indicadores de que os ativos na economia norte-americana estariam sobrevalorizados, como mostrei em meu artigo A Gigantesca Bolha Especulativa Norte-Americana (Diário de Petrópolis, 6 de abril de 2025).
No caso dos Estados Unidos, esta valorização excessiva é o resultado da “reciclagem” dos dólares do déficit comercial (a diferença entre as importações e as exportações) dos Estados Unidos, que são injetados na economia global. Este déficit faz com que empresas que exportam para os Estados Unidos acumulem dólares. Em vez de aplicar estes dólares em seus próprios mercados, o que derrubaria o valor do dólar, elas aplicam este dólares no próprio mercado norte-americano, comprando ações, imóveis de luxo, títulos públicos dos Estados Unidos etc., o que mantém os ativos financeiros norte-americanos sobrevalorizados.
O problema é que as tarifas e as incertezas no comércio internacional, juntamente com o eventual sucesso da política do governo Trump de desvalorizar o dólar (ver meu artigo Há Estratégia nas Tarifas de Trump, Diário de Petrópolis, 15 de março de 2015) pode levar a uma liquidação destes ativos em dólares na tentativa de reequilibrar ativos e passivos. Esta liquidação de ativos em dólares pode produzir uma deflação de ativos e criar problemas para os bancos norte-americanos, assim como dificuldades para as empresas que exportam para os Estados Unidos e que acumularam dólares.
É possível ocorrer um efeito em cadeia, em uma espiral que pode ser lenta ou rápida. É preciso ficar atento aos desdobramentos da economia norte-americana.
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