Edição: sábado, 26 de abril de 2025

Ronaldo Fiani

COLUNISTA

Ronaldo Fiani

O Evento Sentinela da Crise no Sistema Internacional


Ronaldo Fiani


Um dos equívocos mais comuns é acreditar que o sistema internacional, isto é, o conjunto de relações políticas e econômicas entre os vários países, representados por seus Estados nacionais, é caótico, pelo fato de que inexiste um “governo dos governos”, ou seja, alguma autoridade que se sobreponha aos vários Estados e limite sua liberdade de ação no plano global.

O fato é que o sistema internacional é anárquico, ou seja, não possui uma autoridade que governe os Estados nacionais, mas não é caótico. É comum confundir-se anarquia com caos na linguagem corrente, mas a ausência de um governo central não significa necessariamente uma situação caótica. Com efeito, o sistema internacional é anárquico mas possui uma estrutura, que lhe confere um mínimo de ordem. Esta estrutura é baseada em uma hierarquia, que é tanto política quanto econômica.

Ou seja, existem Estados que são mais poderosos do ponto de vista político e econômico, e estes Estados determinam a natureza das relações políticas e econômicas entre os Estados, o que define um sistema internacional específico. Quanto mais poderoso, maior a capacidade de definir as características do sistema internacional. Obviamente, os Estados utilizam esta capacidade para definir a estrutura do sistema internacional de acordo com os seus interesses.

Mas os Estados em geral não utilizam apenas seu poder político e econômico para definir a estrutura do sistema internacional, nem visam apenas a atender seus interesses específicos, normalmente. Usualmente o Estado mais poderoso também leva em alguma medida os interesses de outros Estados importantes ao definir a estrutura do sistema internacional. Ao fazer isso, o Estado mais poderoso procura estabelecer uma estrutura que outros Estados vejam não somente como uma expressão do poder daquele Estado, mas como algo que também convém aos demais Estados.

Ao fazer isso, ou seja, ao construir uma estrutura para o sistema internacional que contemple seus interesses e em alguma medida os interesses de outros Estados que possuem algum poder, o Estado mais poderoso consolida a sua hegemonia. Hegemonia é liderança com consentimento, consentimento este que resulta do fato de que esta liderança é tida como benigna. Isto porque a hegemonia de um Estado reduz a necessidade de demonstrar repetidamente o seu poder, o que é desgastante e economicamente caro, pois consome recursos públicos.

Este processo de construção simultânea de uma estrutura para o sistema internacional, responsável por regular as relações políticas e econômicas entre os Estados, e de consolidação da hegemonia pelo Estado mais poderoso não é novo. Aconteceu no século XVII com a liderança da Holanda, depois no século XIX com a liderança britânica e a partir da segunda metade do século XX com a liderança norte-americana.

Ao contrário do que pode parecer, este processo de construção do sistema internacional e consolidação de uma hegemonia não é pacífico: os holandeses enfrentaram guerras com os britânicos entre os séculos XVII e XVIII (motivadas principalmente por disputas comerciais), os britânicos foram desafiados pelos alemães em duas guerras no século XX, e os norte-americanos foram contestados politicamente pela antiga União Soviética. Mas todos os três, Holanda, Grã-Bretanha e Estados Unidos lograram desenhar o sistema internacional e consolidar sua hegemonia em algum momento.

Recentemente verificou-se uma espécie de evento sentinela, que indica uma crise profunda no sistema internacional. Em medicina, um evento sentinela é uma ocorrência inesperada que pode causar graves danos à saúde de uma pessoa, em geral sendo causado por falhas em processos ou sistemas, tais como erros médicos ou defeitos em equipamentos. Este evento sentinela foi a mudança drástica na política militar da Alemanha, e a alteração consequente de seu teto de gastos públicos.

Esta mudança constitui uma alteração radical em relação ao que vigorava desde o final da Segunda Guerra. Naquele momento, a Alemanha foi desmilitarizada. Esta desmilitarização foi revista de forma parcial em 1955, com a Guerra Fria e a necessidade de se contrapor ao bloco soviético. Mesmo assim, a Bundeswehr alemã foi concebida como uma força armada essencialmente defensiva, com os gastos com defesa limitados a 1,5% do produto interno bruto alemão (o PIB, a soma de tudo que é produzido na economia em um ano), e forte dependência da OTAN (a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a organização de defesa do bloco ocidental criada na Guerra Fria).

Recentemente, a Alemanha suspendeu o teto de 0,35% do déficit público estrutural em relação ao PIB (déficit estrutural é a diferença entre os gastos do governo e suas receitas, sem considerar os efeitos de flutuações econômicas e gastos com emergências repentinas), para gastos militares ou com infraestrutura. Também se comprometeu a aumentar os gastos com defesa, modernizar suas forças armadas e a assumir um maior papel internacional.

Por que isto é um evento sentinela? Porque indica o colapso da hegemonia norte-americana, isto é, o colapso da crença por parte de países que são aliados dos Estados Unidos de que este país é capaz de exercer uma liderança que seja benéfica para todos. Isto vai pôr em movimento forças centrífugas dentro do sistema, em que cada país vai cada vez mais procurar exercer individualmente seu poder na arena internacional.
Haverá forte turbulência pela frente. Apertem os seus cintos.

Edição: sábado, 26 de abril de 2025

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