COLUNISTA
Ronaldo Fiani
“Estagflação” foi um termo cunhado nos anos 1970, para descrever uma realidade que, até então, parecia inédita: inflação com queda no PIB (o produto interno bruto, a soma de todos os bens e serviços produzidos na economia durante o ano). Para entendermos por que esta combinação parecia inédita, é preciso voltar um pouco no tempo. Naquele momento, a grande preocupação quando se formulava política econômica era evitar a volta de uma Grande Depressão, como a que aconteceu nos anos 1930. Recessões e depressões (a forma mais grave de recessão, com uma redução severa e prolongada do PIB) eram conhecidas pela combinação de quedas no PIB com deflação, isto é, com uma queda generalizada dos preços. Daí a surpresa com a ocorrência simultânea de inflação e queda no PIB em meados dos anos 1970, especialmente nos Estados Unidos.
Há uma justificativa para esta associação de recessões com deflação: quando a atividade econômica recua, a demanda pelos bens e serviços produzidos pela economia também diminui, o que tende a desacelerar o aumento dos preços ou, quando a recessão é muito severa, até mesmo a provocar sua redução (a deflação). Deflações são muito temidas, embora raras, porque elas colocam a atividade econômica em risco: as empresas compram matérias-primas e pagam salários na expectativa de realizar um lucro futuro, apenas para descobrirem que seu produto vale menos do que quando fez os pagamentos para produzi-lo.
Na verdade, a combinação de baixo crescimento com inflação tinha uma explicação nos anos 1970: as elevações abruptas do preço internacional do petróleo nos anos 1970, promovidas pela OPEP (a organização dos países produtores de petróleo) aumentaram os custos, o que, juntamente com as pressões inflacionárias que vinham desde o final da década de 1960 provocou uma alta generalizada de preços (o petróleo é importante diretamente na produção de uma série de bens, e indiretamente pelo transporte das mercadorias). Este impacto generalizado nos custos reduziu a lucratividade dos empreendimentos, o que teve efeitos adversos sobre o investimento, e sobre o poder de compra da população, o que reduziu o consumo. Daí a coincidência de redução do PIB com inflação.
Agora o diretor executivo do J. P. Morgan, Jamie Dimon tem afirmado em várias entrevistas que o mundo está caminhando para uma estagflação. Ele está correto?
Provavelmente sim. Uma das causas para uma estagflação já tinha sido apontada em artigos anteriores: a desarticulação das cadeias globais de valor, que está sendo provocada pelas tarifas do governo Trump, que deseja trazer as empresas norte-americanas de volta para os Estados Unidos.
O efeito das cadeias globais de valor sobre a inflação e o investimento globais tem sido subestimado até aqui, talvez porque os efeitos positivos sobre o investimento se concentraram na Ásia, especialmente na China. Contudo, o efeito das cadeias globais na economia mundial foi amplo e profundo. Em primeiro lugar, elas concentraram dramaticamente a produção em poucas empresas, resultando em economias de escala (redução de custos que são obtidas com grandes volumes de produção) até então inimagináveis. Para se ter uma ideia, estima-se que a empresa de Taiwan TSMC produza 70% dos chips para celulares do mundo.
Esta concentração foi viabilizada por inovações tecnológicas que reduziram os custos de transporte (por exemplo, os contêineres) e aceleraram muito as comunicações (por exemplo, a internet); e por inovações institucionais, notadamente a abertura comercial e financeira que ficou conhecida como “globalização”. Além de gerar lucros expressivos, as cadeias expandiram muito a oferta global de produtos manufaturados, barateando o seu preço, o que teve como efeito reduzir pressões inflacionárias, especialmente nos países que se tornaram mercados consumidores.
Em segundo lugar, a constituição e expansão destas cadeias globais de valor ofereceu um horizonte de investimentos extremamente lucrativo, contribuindo para o clima de otimismo na economia global que vigorou a partir dos anos 1990 até a crise de 2008. Assim, as cadeias globais de valor contribuíram para elevar a rentabilidade do investimento global, o que sustentou este investimento nos países que hospedam estas cadeias e proporcionou aplicações financeiras (a partir destes lucros) nos países que consumiam os produtos das cadeias, isto é, crédito.
Paralelamente, países como o Brasil, que produziam as matérias-primas para este ciclo de expansão das cadeias globais de valor também eram beneficiados, com o aumento da demanda por matérias-primas pelas cadeias globais. Este movimento começou a desacelerar a partir da crise de 2008, e agora está sendo bruscamente freado pela nova política comercial norte-americana e suas tarifas. Isto significa que o horizonte de investimento começará a desaparecer, pois as cadeias globais deverão ser adversamente afetadas. Também os preços dos bens que antes eram importados muito baratos devem começar a aumentar, e o fluxo de crédito para os países consumidores deverá diminuir.
Também os países produtores de matérias-primas devem começar a enfrentar dificuldades para gerar renda a partir da exportação destas matérias-primas. O resultado disso parece ser estagnação e inflação.
Jamie Dimon provavelmente está certo. Estamos prontos para este cenário?
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