COLUNISTA
Já tive a oportunidade de discutir os efeitos do déficit comercial norte-americanos sobre o sistema financeiro daquele país. Muito resumidamente, os saldos na balança comercial dos países que exportam para os Estados Unidos retornam para o país, sendo aplicados em títulos da dívida federal norte-americana, ações na bolsa de Nova York e propriedades imobiliárias de luxo em áreas valorizadas. A razão disto é que o dólar é a moeda global e, portanto, investir em ativos denominados em dólar é a principal forma de acumular dólares no portfólio, como reserva de valor para o futuro.
Por sinal, este é um mecanismo que tende a se realimentar: as empresas e os países com superávit comercial (o saldo que resulta da diferença entre as exportações para os Estados Unidos e as importações daquele país) aplicam seus dólares em ativos financeiros e imobiliários norte-americanos, o que valoriza estes ativos e, desta forma, justifica novas aplicações, pois o valor dos ativos em dólar aumenta progressivamente.
É este mecanismo de retroalimentação, produzido pelos déficit comerciais dos Estados Unidos que tem garantido a valorização dos ativos norte-americanos há pelo menos três décadas. No artigo A Gigantesca Bolha Especulativa Norte-Americana (Diário de Petrópolis, 6 de abril de 2025) mostrei como a valorização das ações, títulos públicos e propriedades imobiliárias superou em muito o crescimento do produto interno bruto dos Estados Unidos (o PIB, a soma de todos os bens e serviços produzidos por ano), que determina o aumento da renda de um país. Por sinal, ironicamente, foi com esta valorização de ativos imobiliários que o atual presidente dos Estados Unidos enriqueceu, apesar de ser hoje um crítico feroz do déficit comercial do seu país.
Estas aplicações de não residentes em ativos dos Estados Unidos serviu de base para a expansão do sistema financeiro norte-americano, o que, por sua vez, tem garantido o crescimento do crédito, a partir da reciclagem dos dólares que ingressam no país. Este crédito vem sustentando a expansão do consumo, assim como o financiamento do crescente déficit público dos Estados Unidos.
A soma destes gastos públicos e de consumo reduz a poupança interna norte-americana, que se torna insuficiente para bancar o investimento nos Estados Unidos e acaba ampliando ainda mais o déficit comercial, o que traz ainda mais dólares e faz com que o sistema financeiro do país siga crescendo, estimulando cada vez mais o consumo e os gastos públicos. Portanto, este também é um mecanismo que se realimenta, em um círculo vicioso.
Desta forma, a economia norte-americana está presa a desequilíbrios que se reforçam em círculos viciosos, que dificultam muito uma correção de rumo. A questão é que estes círculos viciosos produzem outros desequilíbrios que envolvem a economia mundial, pois existe uma contrapartida global para este afluxo de dólares em direção aos Estados Unidos. Esta contrapartida tem sua origem em países da Ásia que vêm crescendo também há mais ou menos trinta anos, juntamente com países exportadores de petróleo, que constituem um grupo de países que não dispõem de sistemas financeiros com capacidade para reciclar os dólares que acumulam em suas reservas internacionais.
Sem conseguir absorver os dólares gerados pelo déficit comercial norte-americano (que alimenta os superávits destes países), e com o dólar ocupando a posição privilegiada de moeda global, países superavitários e empresas destes países buscam refúgio em ativos norte-americanos e, assim, têm propiciado não apenas o desenvolvimento do sistema financeiro dos Estados Unidos, mas também do sistema financeiro global.
A expansão das finanças globais, por intermédio dos grandes bancos internacionais está diretamente associada à reciclagem dos dólares acumulados pelos países e empresas superavitários, juntamente com o crescimento do comércio global que o déficit comercial dos Estados Unidos vem alimentando, pois, além de favorecer a aplicação financeira de não residentes naquele país, os grandes bancos internacionais também facilitam as transações comerciais.
Isto significa que não apenas as finanças nos Estados Unidos são vulneráveis em relação ao déficit comercial do país, mas também as finanças globais. Evidentemente, isto deve ser preocupação, em particular, de países que apresentam alto grau de endividamento em relação ao seu próprio PIB, como é o caso de alguns países do sul da União Europeia. Contudo, todos os países estão sujeitos a enfrentar dificuldades na rolagem de suas dívidas, caso as finanças globais sejam afetadas.
De onde virá o sinal de alerta? As duas grandes crises dos últimos cem anos, a Grande Depressão de 1929 e a Grande Recessão de 2008 começaram nos Estados Unidos. Se os desequilíbrios na economia dos Estados Unidos levarem a uma crise, ela vai contaminar o resto da economia mundial, com consequências muito graves.
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