COLUNISTA
Ronaldo Fiani
No artigo da semana passada discuti as causas da fragilidade nas finanças globais. Esta fragilidade aumenta o risco de uma crise global de liquidez. Um ativo é dito “líquido” quando ele pode ser empregado para saldar um compromisso com rapidez e sem perda significativa no seu valor. Assim, uma reserva em dólares de uma empresa internacional é um ativo líquido, já os estoques das suas mercadorias de que dispõe não são ativos tão líquidos como o dólar, pois, se precisar liquidar estes estoques com rapidez para saldar algum compromisso, vai ter de aceitar vendê-los com preços reduzidos, com perda de valor.
Uma crise global de liquidez acontece quando há uma escassez de ativos líquidos na economia global, ou, mais simplesmente, “falta dinheiro”, porque dinheiro é o ativo mais líquido que existe por definição. Mas aqui temos um problema: o que é “dinheiro”, quando se fala de economia global? No caso da economia de um país, não há qualquer dúvida a respeito: dinheiro é a moeda emitida pelo banco central país, que é o ativo mais líquido por excelência.
Mas, quando se trata da economia global, a caracterização do que é “dinheiro” não é tão simples, uma vez que na economia global temos muitos países, cada um emitindo sua própria moeda. Cada país possui o seu próprio banco central, e não existe um banco central responsável por emitir uma moeda internacional e controlar a liquidez do sistema econômico global, ou seja, controlar a quantidade desta hipotética moeda internacional.
Como os Estados Unidos eram o único país desenvolvido com a economia intacta e dinâmica no final da guerra, o dólar começou a ser internacionalmente aceito. Assim, a liquidez global passou a ser medida pela oferta internacional de dólares. Desta forma, desde o acordo de Bretton Woods no final da Segunda Guerra (1944), foram criadas uma série de instituições internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), com a tarefa de prover liquidez para os países em crise.
Inicialmente os programas de recuperação da Europa, tal como o plano Marshall, e os investimentos dos Estados Unidos em outros países garantiram a liquidez da economia global. Isto foi muito facilitado pela papel do dólar como moeda global: como o dólar era a única moeda aceita internacionalmente no pós-guerra, a garantia da liquidez internacional se dava pelos gastos e investimentos globais norte-americanos. Ao longo dos anos 1970, o Federal Reserve (FED, o banco central dos Estados Unidos) começou agir de forma mais ativa no que diz respeito à liquidez internacional. Embora não haja um banco central global, na prática o FED começou a atuar neste sentido, fornecendo liquidez (dólares) para as finanças globais, principalmente por meio de operações de crédito de curto prazo (swaps), em que são fornecidos dólares para outro banco central, em troca da moeda deste
países, sendo a operação revertida pouco tempo depois (alguns meses). Em termos mais técnicos, o FED começou a atuar como emprestador de última instância.
Hoje em dia, os swaps são a principal forma de prover liquidez para bancos centrais de outros países, superando com folga a atuação do FMI. Mas algo importante vem acontecendo: redes formados por outros bancos centrais, que fazem acordos de swap entre si começaram a se expandir desde a crise de 2008-9, prosseguiram crescendo de forma mais moderada entre 2010 e 2015, estabilizaram-se até 2020, quando a pandemia da Covid-19 provocou uma onda expansiva, e depois de 2023 se reduziram um pouco. Mesmo assim, há 175 linhas ativas cobrindo países que respondem 79% da produção mundial.
Há um fato curioso, contudo. Desde 2010, os principais centros destas redes têm sido o Banco Central Europeu (BCE, o banco central dos países que adotaram o euro como moeda), e o Banco Popular da China (PBOC). Enquanto o BCE tem expandido sua rede direta principalmente para os países mais desenvolvidos e o Leste Europeu, o PBOC tem expandido seus acordos para países menos desenvolvidos, tanto na Ásia, como na África e na América
Latina. Ao mesmo tempo, a rede de acordos diretos do FED permanece limitada à América do Norte e Europa.
Isto significa que o acesso à liquidez em dólares para a economia mundial hoje, no caso de uma crise de liquidez global, depende mais do BCE e do PBOC do que do FED. Mas nem a União Europeia, nem a China emitem dólares. Os dólares de que dispõem resultam do déficit comercial dos Estados Unidos, que a atual administração norte-americana quer reduzir, ou transformar em superávit. Caso este objetivo seja alcançado, a disponibilidade de dólares destes bancos será muito reduzida, o que pode ser problemático no caso de uma crise de liquidez global.
Ao mesmo tempo, também em um cenário eventual de crise, os bancos centrais que precisarem de socorro terão maior acesso à oferta das moedas da Europa (euro) e China (renminbi), que podem ganhar espeço em relação ao dólar.
Tempos interessantes nos esperam.
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