COLUNISTA
No artigo da semana passada abordei a alta sustentada do preço do ouro em dólares no mercado internacional, o que vem acontecendo há pelo menos três anos, mostrando naquela oportunidade que por trás deste comportamento inusitado está uma mudança na estratégia de vários bancos centrais importantes, no que diz respeito à administração de suas reservas internacionais. Diante desta tendência, vale a pena perguntar: por que não as criptomoedas, especialmente a mais famosa delas, o bitcoin? Esta sugestão de que os bancos centrais priorizem o bitcoin como reserva internacional, em relação até mesmo o dólar, tem sido apresentada por alguns economistas, como Matthew Ferranti, ex-consultor da Casa Branca (veja: https://www.forbes.com/sites/frankcorva/2024/10/25/why-central-banks-might-consider-bitcoin-as-a-reserve-asset/ ). Com efeito, alguns países têm explorado esta opção, ainda que de forma limitada, especialmente como forma de contornar sanções (caso da Rússia).
Com efeito, o ouro e o bitcoin compartilham algumas características comuns, que parecem sugerir, superficialmente, uma equivalência como ativos globais. Em primeiro lugar, as ofertas de ouro e de bitcoins não podem ser expandidas por governos, como é o caso de suas moedas nacionais. Um governo pode expandir a quantidade de moeda em circulação, por exemplo, comprando títulos públicos no mercado aberto de forma a injetar liquidez (dinheiro) na economia, ou reduzir a quantidade de moeda, vendendo títulos públicos no mercado aberto. Assim, governos têm mecanismos para afetar a oferta de sua moeda, o que pode afetar o seu valor.
No caso do ouro, a oferta cresce de acordo com a produção das minas que, estima-se, cresce bem lentamente (uma taxa estimada em torno de 1% ao ano). No caso do bitcoin, sua oferta se encontra limitada a 21 milhões de moedas. Isto torna o ouro e o bitcoin imunes a variações nas políticas monetárias dos governos, especialmente daqueles governos que emitem moedas que são consideradas reservas internacionais, particularmente o dólar norte-americano.
Trata-se de uma vantagem evidente, especialmente quando se considera que há incerteza sobre a gestão da moeda que funciona como reserva global, o dólar, incerteza que tem aumentado nos últimos meses com a intenção declarada da equipe econômica do governo Trump de promover a desvalorização do dólar, para recuperar a competitividade das exportações norte-americanas. Por que então os bancos centrais, com exceção do Banco Central de El Salvador, têm optado pelo ouro?
Para entender isto, é preciso compreender a dinâmica das reservas internacionais dos bancos centrais. Para um ativo fazer parte das reservas de um banco central de forma importante é preciso que ele seja, simultaneamente, um meio de troca internacionalmente aceito, isto é, em termos econômicos, que ele tenha liquidez, e uma reserva de valor, isto é, que seu valor mais ou menos se mantenha ao longo do tempo, de forma a permitir acumular riqueza para qualquer necessidade eventual. Vale enfatizar que estas duas condições liquidez e reserva de valor têm de ser satisfeitas ao mesmo tempo, caso contrário o ativo não será adequado como reserva internacional. Pois bem, o bitcoin não satisfaz nenhuma destas duas condições adequadamente. Primeiro, ele é um ativo muito pouco aceito, ou seja, tem pouquíssima liquidez em transações internacionais. Em função disso, sua demanda é muito mais motivada pela possibilidade de ganhos especulativos com a variação do seu valor, do que para atender transações correntes.
Ocorre que é a demanda para satisfazer transações, a chamada demanda transacional que confere liquidez a um ativo e, assim, estabiliza o seu valor. Isto porque a demanda transacional varia de acordo com o nível de atividade econômica, o qual dificilmente flutua de forma dramática no curto prazo. Já quando a demanda para atender transações é pouco desenvolvida, resta apenas a demanda pelo motivo especulação, que tem um comportamento muito instável, pois é determinada pelas expectativas de ganhos e perdas, como um cassino. A demanda por bitcoins é essencialmente especulativa, em função de sua pouca liquidez, o que faz com que o valor do bitcoin varie amplamente, de acordo com as expectativas.
Exatamente por este comportamento, o bitcoin também não é adequado como reserva de valor. Dada sua pequena liquidez e demanda essencialmente, o bitcoin também acaba sendo um ativo inadequado como reserva de valor, pois está sujeito a altas e quedas abruptas de valor no curto prazo, o que o torna um ativo de investimento muito arriscado. Não por acaso, estudos estatísticos têm verificado uma elevada correlação do valor da bitcoin com o retorno do mercado de ações norte-americano desde 2015, que é sabidamente um investimento de risco.
E o ouro? O ouro não é utilizado diretamente como moeda em transações internacionais. Contudo, ele possui grande liquidez, pois pode ser rapidamente convertido em moeda, permitindo ao seu proprietário saldar suas obrigações com rapidez e baixo custo. Com efeito, em 2023 foram negociados em média 163 bilhões de dólares em ouro, rivalizando com os títulos do tesouro norte-americano. Isso faz com que a demanda por ouro seja em parte determinada pelo nível de transações econômicas, o que lhe confere uma maior estabilidade de preços. Dada a maior estabilidade de preços e sua liquidez, o ouro é geralmente aceito como reserva de valor, especialmente quando considerada a menor variação de seu preço internacional se comparado a outro ativos, como, por exemplo, o bitcoin.
Por sua natureza econômica e pelas condições políticas e econômicas globais, o ouro ainda deverá ser por muito tempo uma variável estratégica para os bancos centrais
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