COLUNISTA
Ronaldo Fiani
Os economistas mais atentos à evolução econômica recente têm chamado a atenção para as transformações radicais que as chamadas big techs estão provocando no funcionamento do sistema econômico moderno. Não há uma definição rigorosa e consensual, mas as big techs em geral são as grandes empresas que dão acesso ao universo digital, tanto empresas de comercialização (como a Amazon), como empresas que oferecem redes sociais (como a Meta, responsável pelo Facebook, Instagram e WhatsApp), ou produzem equipamentos como computadores e celulares (como a Apple e a Microsoft).
Um dos economistas que mais têm chamado a atenção para as transformações radicais que estas empresas têm provocado não apenas na economia, mas no comportamento das pessoas é Yanis Varoufakis, autor do livro Tecnofeudalismo: O que matou o capitalismo (São Paulo: Crítica, 2025). Como indica o próprio subtítulo, Varoufakis afirma que o capitalismo terminou, e que as big techs são as responsáveis por isso. Segundo Varoufakis, estaríamos de volta a uma nova espécie de feudalismo, o “tecnofeudalismo”: para viver e produzir no mundo moderno, indivíduos e empresas teriam de pagar ou trabalhar (fornecendo informações) para as big techs, da mesma forma que antes tinham de pagar ou trabalhar nas terras dos senhores feudais.
Com efeito, a afirmação de que o capitalismo terminou parece irrefletida, pois, até o momento, a propriedade privada e o ganho econômico na forma de lucro (a base do sistema capitalista) ainda são o fundamento das economias, e não surgiu nenhum outro tipo de propriedade, ou de motivação econômica alternativa. Além disso, o domínio das big techs tem significado economicamente o comando do comércio (e dos serviços em geral) sobre a indústria, e este comando não é novidade no capitalismo. Ele já aconteceu antes, justamente na gênese do capitalismo, com o sistema que ficou conhecido como putting out. O sistema putting out surgiu na Europa Ocidental, por volta dos séculos XIV e XVI, quando o capitalismo dava os seus primeiros passos no continente. Neste sistema, que alcançou sua maior expansão na Inglaterra, França, Alemanha e Países Baixos nos séculos XVII e XVIII,
comerciantes adiantavam matérias-primas e dinheiro a camponeses e artesãos, recolhendo depois o produto para vender no mercado. O pagamento era feito por peça, e o controle do processo produtivo ficava com o comerciante. O sistema se expandiu por várias etapas e vários ramos produtivos, como fiação, tecelagem e tintura na produção de tecidos, produção de pregos, ferramentas, relógios etc.
No sistema putting out, o comércio comandava a manufatura, pois o que determina se o comércio irá comandar a indústria, ou se o contrário vai prevalecer são as economias de escala. Diz-se haver economias de escala se o custo por unidade produzida se reduz, quando aumenta o volume de produção. Esta redução resulta do fato tecnológico de que o aumento no volume de capital investido frequentemente está associado a um aumento mais do que proporcional na produção. Assim, por exemplo, se houver economias de escala, ao dobrar o investimento em máquinas, equipamentos e instalações, digamos, de $100 mil para $200 mil, a produção aumenta, vamos supor, de 100 para 400 unidades. Como resultado, o custo por unidade cai de $1 mil para $500.
Como as economias de escala determinam quem vai comandar a relação entre indústria e comércio? Simples: quando há economias de escala, os grandes negócios têm vantagem sobre os pequenos, pois o custo por unidade produzida dos primeiros é menor do que o mesmo custo dos últimos. Com isto, o setor que apresentar maiores economias de escala tende a apresentar um menor número de participantes do que o setor com menores economias de escala. Como dizem os economistas, o setor com maiores economias de escala tende a se mostrar mais concentrado. Setores mais concentrados têm maior poder de barganha, e com isso se apropriam de uma parcela maior dos ganhos da atividade.
Foi isso o que aconteceu com o sistema putting out: os comerciantes atendiam vários mercados simultaneamente, realizando economias de escala (pois movimentavam um volume muito maior de produtos). Enquanto isto, artesãos e camponeses operavam em pequena escala, limitados, por exemplo, aos seus teares manuais, competindo entre si na oferta dos seus produtos para os grandes comerciantes. O resultado é que os comerciantes se apropriavam da maior parte dos ganhos gerados nas atividades que bancavam, em função de seu maior poder de barganha.
A relação de comando do comércio em relação à manufatura se inverteu com a chegada da indústria, com suas máquinas movidas a energia não humana, incialmente energia a vapor, depois à eletricidade. Com isto, a produtividade na produção cresceu enormemente, e as grandes indústrias alcançaram escala muito superior às empresas de comercialização que, em geral, tinham alcance regional. O poder de barganha trocou então de lado: agora eram os industriais em número reduzido que negociavam com empresas de comercialização, que se encontravam em número mais elevado.
Assim, inicialmente sob o capitalismo, o comando da atividade econômica estava com o comércio, depois passou para a indústria, e agora parece estar voltando para o comércio e os serviços. Isto significa que o crescente poder econômico das big techs não é preocupante? Muito pelo contrário: ele é muito preocupante, em especial para países menos desenvolvidos, como é o caso do Brasil. Este será o tema da segunda parte deste artigo, no próximo domingo.
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