COLUNISTA
Ronaldo Fiani
Vimos na semana passada que o comando do comércio (e dos serviços, de uma forma geral), provocado pela ascensão das big techs sobre a produção não é algo inédito, mas era característico do surgimento do capitalismo, período em que o comércio desfrutava de economias de escala muito maiores do que a manufatura, ainda presa a um sistema artesanal de produção. Somente com a mecanização a partir do aproveitamento da energia a vapor, e depois a partir da eletricidade é que a produção vai alcançar uma escala mais elevada, e acabar submetendo o comércio ao seu comando. Portanto, o termo “tecnofeudalismo” para descrever a atual subordinação da produção à estrutura de comercialização e aos serviços das big techs é uma caracterização inadequada para esta realidade, pois ela não é “feudal”, já que esteve presente na origem do capitalismo. Veremos no artigo de hoje que há um segundo motivo pelo qual “tecnofeudalismo” é um termo inadequado.
Mas, antes disso, como se caracteriza este comando das big techs sobre a produção, ou seja, de onde vem o seu poder extraordinário? Na medida em que elas extraem renda da produção, qual o seu efeito sobre o investimento e o crescimento? Qual a importância deste comando das big techs para países menos desenvolvidos, como o Brasil?
Vejamos inicialmente de onde vem o extraordinário poder de comando que as big techs exercem sobre a produção. Vimos no artigo da semana passada que o poder na economia, que os economistas chamam de poder de mercado resulta frequentemente de economias de escala, da seguinte forma: as economias de escala fazem com o que a produção aumente mais rapidamente que os custos totais e, assim, o custo por unidade produzida cai, à medida que a escala de produção se eleva. Como o custo por unidade se reduz com a ampliação da escala, as grandes empresas têm uma enorme vantagem de custos sobre as pequenas e médias empresas. O resultado é que nos setores da economia em que há importantes economias de escala, há poucas empresas. Com isso, a concorrência entre elas é menos intensa, e elas possuem um maior poder de barganha a negociação com outras empresas.
Ocorre que as tecnologias digitais possibilitam economias de escala inimagináveis, de uma dimensão que a indústria não pode alcançar, em função de sua chamada escalabilidade.
Uma aplicação digital ou um serviço digital é escalável se ele consegue elevar rapidamente e em grande número seus usuários, sem aumentar de forma significativa seus custos, às vezes, até mesmo mantendo seus custos constantes! Considere, por exemplo, um aplicativo de compras que, ao ser lançado, conte inicialmente com 10 mil usuários. Caso ele se torne mais popular, e sua base de usuários, digamos, aumente 5 vezes, passando rapidamente para 100 mil usuários, trata-se de algo que pode frequentemente ser feito sem problemas, com um aumento irrisório de custos. Não há nada na indústria que se aproxime disso: trata-se de um fenômeno típico do
mundo digital: a presença de escalabilidade permite a realização de economias de escala em dimensões extraordinárias, tanto em amplitude como em rapidez.
O resultado disso é que as big techs são empresas que atuam globalmente, conectando mercados mundo afora. Com efeito, plataformas de comércio eletrônico permitem comprar um produto localmente, ou importar o mesmo produto da Ásia. Podemos baixar aplicativos de celulares em qualquer lugar do planeta. Além disso, estas empresas podem direcionar o comércio para determinados produtos ou determinadas empresas. Como consequência, o mundo digital tende a apresentar um número muito pequeno de empresas bem-sucedidas, que possuem assim um poder de mercado extraordinário na negociação com a indústria.
Esta é uma segunda razão pela qual o termo “tecnofeudalismo” é inadequado. A economia feudal era uma economia fragmentada em pequenas unidades: a divisão política entre inúmeros feudos, cada qual cobrando direitos de passagem e renda dos camponeses reduzia muito o alcance do comércio, que se restringia frequentemente ao comércio local. A economia digital das big techs é uma economia integrada globalmente, caracterizada por empresas
gigantescas, com extraordinário poder mercado. Neste sentido, estamos vivendo o oposto à economia feudal.
Esta situação gera dois problemas. Em primeiro lugar, dado o seu enorme poder de mercado, as big techs podem se apropriar de boa parte dos lucros gerados na produção, extraindo rendas da indústria de forma a deixar com as empresas produtoras apenas o necessário para que ainda valha a pena utilizar tecnologias digitais. Isto significa menor capacidade de investimento, pois menores lucros representam tanto menos recursos para reinvestir na
produção, como menor acesso a crédito. O resultado será a redução no crescimento e modernização da indústria.
Como se já não bastasse isso, a integração dos mercados globais está elevando a competição entre produtores a um nível inédito. Hoje o leitor pode comparar os preços e comprar utilidades domésticas produzidas no Brasil, nos Estados Unidos ou na China, instantaneamente. A pressão competitiva vai reduzir ainda mais os lucros dos produtores locais, além dos pagamentos que eles têm de fazer às big techs. Isso deve limitar ainda mais o potencial
de crescimento e inovação destas empresas.
Qual a importância disto para países como o Brasil? Países menos desenvolvidos como o Brasil tendem a se especializar apenas no fornecimento de produtos para os mercados digitais, transferindo boa parte da renda assim gerada para as big techs que viabilizam estes mesmos mercados digitais. Mais do que um “tecnofeudalismo”, estamos rumando a níveis inéditos de concentração de poder de mercado e de dependência dos países menos desenvolvidos.
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