Edição anterior (3489):
segunda-feira, 27 de maio de 2024


Capa 3489
Ronaldo Fiani

COLUNISTA

Ronaldo Fiani

O Falso Paradoxo do Colapso do Liberalismo

Há uma semana o presidente norte-americano Joe Biden escalou a guerra comercial com a China, iniciada em 2018 ainda sob a presidência de Donald Trump. A tarifa sobre a importação de carros elétricos chineses que já não era baixa (25%), foi elevada para 100%, a tarifa sobre células fotovoltaicas (essenciais para painéis solares) aumentou de 25% para 50%, a tarifa sobre baterias de lítio para carros elétricos foi elevada de 7,5% para 25%, as tarifas sobre microcircuitos foram aumentadas de 25% para 50%, além de aumentos nas tarifas de importação sobre equipamentos de saúde (como respiradores) e produtos de alumínio.

O governo chinês se manifestou contra o que chamou (corretamente) de uma violação das regras da Organização Mundial do Comércio ( https://www.newsweek.com/biden-escalates-us-economic-war-china-evs-1900288#:~:text=The%20Biden%20administration%20is%20set,2018%2C%20during%20the%20Trump%20administration ). Calcula-se que o valor das exportações chinesas para os Estados Unidos atingidas pela elevação tarifária alcance nada menos do que 18 bilhões de dólares, e espera-se que represálias sejam adotadas pelo governo chinês.

Alguns jornalistas e comentaristas têm se mostrado surpresos com a mudança de 180 graus na estratégia comercial dos Estados Unidos. Vários lembraram o papel histórico dos Estados Unidos na defesa da política de liberdade para o comércio internacional e da doutrina econômica liberal. Outros têm se apressado a julgar a culpa na China, como se os Estados Unidos estivessem apenas se defendendo de políticas chinesas de subsídio para a sua indústria.

Na verdade, se a história econômica fosse mais conhecida, não haveria surpresa. Longe de ser um princípio abstrato a ser seguido como um dever moral, ou seja, um mandamento a ser obedecido independentemente de qualquer circunstância, o liberalismo (aqui entendido como defesa da liberdade de comércio entre os países, com tarifas baixas ou inexistentes) é uma política econômica como qualquer outra e, portanto, os países a adotam apenas quando lhes é conveniente.

Com efeito, o pioneirismo da indústria têxtil da Grã-Bretanha no século XIX tem seu início no final do século XV com a indústria têxtil de lã, na época um setor de ponta da manufatura, a partir de uma série de medidas de proteção que se iniciou sob o reinado de Henrique VII (1485-1509) e chegou até o reinado Elizabeth I (1558-1603). Os estímulos adotados pelos monarcas neste período envolveram restrições sobre a exportação de lã bruta (barateando a matéria-prima para os fabricantes de tecidos de lã) e a cooptação de artesãos flamengos (a mão de obra mais qualificada na indústria de lã naquele momento) para a produção de tecidos de lã.

Quando a Grã-Bretanha atingiu capacidade produtiva suficiente para absorver toda a produção de lã nacional, por volta de 1587, proibiu a exportação de lã bruta, o que quebrou os produtores dos Países Baixos, seu maior concorrente, eliminando a competição internacional e garantindo uma posição de liderança para a sua indústria têxtil.

Mais tarde, em 1721 a reforma da lei mercantil promovida pelo primeiro ministro Robert Walpole ofereceu uma série de incentivos e subsídios às exportações britânicas de manufaturados, ao mesmo tempo em que elevava as tarifas sobre as importações de vários produtos. Estas tarifas elevadas vão permanecer até 1820, ou seja, quando a revolução industrial iniciada com a utilização do vapor como fonte de energia já estava em curso. Somente naquele momento, quando a liderança britânica no comércio internacional de manufaturas era indiscutível, a Grã-Bretanha passa a defender o liberalismo, com a eliminação de barreiras comerciais na forma de altas tarifas de importação.

Também no caso dos Estados Unidos, a defesa da liberdade de comércio só passou a valer depois da Segunda Guerra Mundial, tendo sido a proteção da indústria local com tarifas de importação elevadas uma das principais causas da Guerra da Secessão, juntamente com a abolição da escravidão. Com efeito, desde 1816 os estados do norte defendiam a elevação das tarifas para proteger sua indústria, enquanto os estados do sul defendiam tarifas baixas, para importar os manufaturados que consumiam com preços mais baixos.

Com a vitória do norte na Guerra da Secessão, tarifas elevadas para proteger a indústria norte-americana vão valer até o final da Segunda Guerra. Naquele momento, com a Europa Ocidental e o Japão devastados, não havia competidor para os produtos norte-americanos no comércio global, e os Estados Unidos se tornam um ferrenho defensor da liberdade de comércio. Esta posição liberal norte-americana está sendo revista agora, com a ascensão da China no comércio internacional.

Portanto, o atual colapso do liberalismo nada tem de paradoxal, mas obedece aos interesses norte-americanos do momento, da mesma forma que a defesa do liberalismo antes obedeceu aos mesmos interesses (e previamente aos interesses da Grã-Bretanha). Políticas econômicas não são mandamentos gravados em pedra, mas ferramentas que os países empregam de acordo com os seus interesses.

Edição anterior (3489):
segunda-feira, 27 de maio de 2024


Capa 3489

Veja também:




• Home
• Expediente
• Contato
 (24) 99993-1390
redacao@diariodepetropolis.com.br
Rua Joaquim Moreira, 106
Centro - Petrópolis
Cep: 25600-000

 Telefones:
(24) 98864-0574 - Administração
(24) 98865-1296 - Comercial
(24) 98864-0573 - Financeiro
(24) 99993-1390 - Redação
(24) 2235-7165 - Geral