COLUNISTA
Ronaldo Fiani
O economista sueco Karl Gunnar Myrdal (1898-1987) foi um dos economistas mais importantes do século XX. Seu currículo impressiona: foi professor da Universidade de Estocolmo, membro do parlamento sueco, ministro da indústria e comércio. Também foi secretário executivo da Comissão das Nações Unidas para a Europa em 1947, tendo sido agraciado com o Prêmio do Banco da Suécia em Economia em 1974. Apesar disso, tem sido mantido no ostracismo pelos acadêmicos brasileiros, mais interessados em estudar as teorias econômicas convencionais, em que há mercados desenvolvidos e eficientes para todos os tipos de bens e serviços e todos os recursos de que a economia dispõe para produzir, como a mão de obra, estão plenamente empregados, ou seja, se alguém não está trabalhando é porque está demandando um salário maior do que a sua capacidade de trabalho vale.
Mas e o desemprego na economia real, longe das teorias nas salas de aula? Para a maior parte dos economistas que estamos formando em nossas universidades, que se limitam a estudar essas teorias econômicas convencionais, ainda que alguém não esteja trabalhando mesmo que aceite receber um salário menor, o que significaria desemprego do jeito que todos nós observamos no mundo em que vivemos, isto seria apenas um problema de curta duração: com a pressão dos trabalhadores que não têm emprego no mercado de trabalho, os salários acabariam caindo e, portanto, o emprego aumentaria até atingirmos o pleno emprego.
O problema é que as coisas não se resolvem tão fácil assim, e acreditar em soluções fáceis deduzidas de teorias equivocadas não ajuda a resolver os graves problemas que impedem o desenvolvimento do nosso país. Gunnar Myrdal elucidou um importante mecanismo que mantém parcelas importantes da população de países em desenvolvimento, como o Brasil, em situação de desemprego e pobreza. Este mecanismo se torna ainda mais problemático no limiar de uma mudança tecnológica que vai alterar radicalmente o trabalho, como é o caso da revolução digital. Gunnar Myrdal chamou este mecanismo de causação circular cumulativa. Por causação circular cumulativa Myrdal entendeu um processo em que a mudança em um fator afeta outros fatores, em uma reação em cadeia em que as consequências se reforçam mutuamente no mesmo sentido, tornando difícil reverter o processo. Por exemplo, imagine uma hipotética região que dependa de empresas têxteis como atividade econômica central. Suponha agora que, pela difusão da internet das coisas e de inteligência artificial, com controle de processos produtivos à distância pela internet, a produção de tecidos seja redistribuída para o exterior, e as empresas têxteis nesta região fechem as portas. A consequência será a redução na renda e no emprego dos habitantes desta região. Contudo, as coisas não param por aí. A mudança provocada pelo fechamento das fábricas vai impactar outros aspectos da vida das pessoas nesta região, gerando uma cadeia de mudanças que irá reforçar os efeitos negativos da mudança original. Assim, a redução da atividade econômica naquela região vai levar à redução na demanda por outros bens e serviços nos mercados locais, o que vai provocar a mudança de outras empresas e trabalhadores (especialmente os mais qualificados, que possuem mais facilidade para encontrar emprego) para outras regiões, reduzindo assim a arrecadação fiscal naquela região onde as fábricas fecharam.
A redução da arrecadação fiscal vai diminuir os investimentos públicos em infraestrutura, escolas e hospitais, o que vai empobrecer a comunidade: com menos infraestrutura, saúde e educação, a capacidade de produção da população local vai diminuir, o que vai tornar a reduzir a sua renda, além de afastar ainda mais os negócios da área, agravando a pobreza. Eis a causação circular cumulativa em plena operação: uma mudança inicial afeta vários fatores, que se reforçam mutuamente na mesma direção, o que torna a reversão do processo de aumento da pobreza na nossa hipotética região difícil de ser obtida. Um economista formado a partir da teoria econômica convencional teria muitas dificuldades para perceber a atuação da causação circular cumulativa, e acreditaria que o fechamento inicial das fábricas não seria um problema, pois o capital destas empresas apenas se deslocaria para outras atividades. Contudo, como Myrdal mostrou e o nosso exemplo buscou ilustrar, não é o que acontece. A causação circular cumulativa não apenas aprofunda o efeito negativo da mudança inicial, mas cria uma espécie de círculo vicioso que torna difícil reverter a situação.
O leitor já deve ter percebido que a causação circular cumulativa age negativamente em várias áreas do país, especialmente nas chamadas periferias das grandes cidades, onde falta infraestrutura, educação, saúde, e os empregos são de baixa qualidade. Em função desta causação circular cumulativa de caráter negativo, o fosso que separa estas populações das periferias das camadas mais favorecidas só tende a piorar com a revolução digital, cujas transformações vão demandar trabalho criativo. Trabalho criativo, por sua vez, é o resultado de um nível educacional e cultural elevado, o que demanda infraestrutura, habitações dignas, escolas, saúde e acesso à cultura. Sem isso, acreditar que as empresas que fecharem terão apenas seu capital redirecionado para outras atividades é sonhar acordado. Precisamos começar a estudar Myrdal.
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