Edição anterior (3508):
domingo, 16 de junho de 2024


Capa 3508
Ronaldo Fiani

COLUNISTA

Ronaldo Fiani

A Elitização do Emprego na Era da Revolução Digital


Ronaldo Fiani


Nos dois últimos artigos que escrevi apresentei o conceito de causação circular cumulativa, elaborado pelo economista sueco Karl Gunnar Myrdal (1898-1987) para destacar as barreiras à melhoria no padrão de vida das populações mais discriminadas, especialmente em países menos desenvolvidos como o Brasil. Destaquei que estas barreiras vão se tornar um problema ainda mais grave, à medida que a chamada revolução digital aprofundar o fosso que separa os mais favorecidos daqueles que se encontram em pior situação na sociedade.

O leitor deve estar se perguntando por que a revolução digital, a chamada indústria 4.0 vai piorar este fosso. Afinal, a aplicação das tecnologias digitais à produção (como a inteligência artificial, a internet das coisas, a robótica etc.) não deve aumentar extraordinariamente a produtividade? Isto não vai elevar o nível de renda dos trabalhadores? A situação geral da sociedade não vai melhorar?

É preciso entender que a apropriação dos efeitos positivos do aumento da produtividade e do consequente incremento da renda pela maioria da sociedade é algo que depende de uma série de condições, as quais se tornam ainda mais complexas no caso de um país menos desenvolvido com graves desigualdades, como é o caso do Brasil. Uma condição essencial para que estes efeitos positivos se difundam é que o número de empregos gerados pelas novas tecnologias digitais supere o número de empregos tornados obsoletos por estas mesmas novas tecnologias.

Para que esta condição seja satisfeita, isto é, para que os empregos gerados pelas novas tecnologias digitais superem os empregos destruídos pelas mesmas tecnologias, é preciso que os trabalhadores tenham condições de operar com estas novas tecnologias, especialmente os trabalhadores pobres, incluindo aqueles pertencendo às comunidades que vivem marginalizadas nas grandes cidades brasileiras, os quais constituem uma parcela expressiva da população e precisam ver suas condições de vida melhorarem, se o Brasil quiser se tornar um país desenvolvido.

Se isto não ocorrer, os trabalhadores mais pobres serão relegados a empregos de baixa remuneração, ou a atuarem como trabalhadores autônomos e empreendedores individuais de baixa renda, e o fosso que separa os dois grupos sociais vai apenas aumentar. O Brasil vai se tornar cada vez mais uma sociedade de enclave, com uma minoria em condições dignas e uma maioria lutando para sobreviver. Ocorre que é justamente com relação a esta condição que mencionei acima, de que os trabalhadores pobres estejam aptos a operar com as novas tecnologias que começam os problemas, especialmente em um país menos desenvolvido como o Brasil. O leitor talvez esteja antecipando que o problema é essencialmente a deficiência escolar nas áreas mais pobres, a resultante baixa performance dos alunos de baixa renda etc. Sem dúvida, isto também é um problema, mas as tecnologias digitais têm uma peculiaridade que complica ainda mais a situação.

A peculiaridade é que as novas tecnologias digitais vão exigir muito mais do que apenas interpretar textos adequadamente e dominar operações matemáticas, ainda que um pouco mais elaboradas. As novas tecnologias digitais vão aumentar o nível de exigência sobre o trabalho intelectual, tornando redundante até mesmo aquele trabalho intelectual que se limita apenas à aplicação de padrões repetidos, como a análise de imagens em exames de saúde e de registros contábeis, por exemplo.

Agora, caraterísticas que até aqui eram pouco frequentes mesmo no trabalho intelectual vão ganhar importância crescente, como capacidade de análise e pensamento crítico, desejo e capacidade permanente de aprender e interesse e capacidade de resolver situações complexas, além de, obviamente, possuir o conhecimento que permita operar as novas tecnologias. As novas exigências da revolução digital não se limitarão, portanto, apenas a conhecer matemática, física e química e, neste caso, visões instrumentais da educação, que afirmam que os estudantes brasileiros precisam melhorar seu desempenho escolar em disciplinas tecnológicas, como matemática, física e química têm uma percepção equivocada da situação.

Ou seja, não apenas o conhecimento de uma série de ferramentas técnicas e científicas será importante, como o conhecimento de fórmulas e algoritmos matemáticos, mas a visão mais geral do contexto em que estas ferramentas são utilizadas, com a consideração de suas possibilidades alternativas de uso e o desenvolvimento criativo de soluções tornar-se-ão fundamentais. Para usar uma metáfora, o trabalhador da revolução digital terá algo de cientista, algo de artista, mas também algo de filósofo.

O problema é que para ser cientista, artista e filósofo ao mesmo tempo, é necessário ter uma formação cultural ampla, pois só assim o pensamento analítico se expande, e com isso a capacidade de reflexão sobre o contexto, e deste modo a criatividade e o conhecimento tecnológico podem convergir para atender à demanda da revolução digital. É exatamente o acesso à cultura que é sistematicamente desprezado em nosso país, tido como erudição inútildiante do conhecimento científico útil, ou, pior ainda, negado na prática pelas condições de vida e pela discriminação que sofrem as populações pobres.

Nas condições atuais do Brasil, a revolução digital vai elitizar o mercado de trabalho, e o fosso que divide nossa sociedade só tende a se agravar.

Edição anterior (3508):
domingo, 16 de junho de 2024


Capa 3508

Veja também:




• Home
• Expediente
• Contato
 (24) 99993-1390
redacao@diariodepetropolis.com.br
Rua Joaquim Moreira, 106
Centro - Petrópolis
Cep: 25600-000

 Telefones:
(24) 98864-0574 - Administração
(24) 98865-1296 - Comercial
(24) 98864-0573 - Financeiro
(24) 99993-1390 - Redação
(24) 2235-7165 - Geral