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Ronaldo Fiani

COLUNISTA

Ronaldo Fiani

Revolução Digital e Concentração de Lucros


Ronaldo Fiani


No artigo da semana passada escrevi que a revolução digital que se inicia vai aumentar a desigualdade entre os salários.  No artigo desta semana vou abordar a questão do impacto da revolução digital nos lucros, porque este impacto vai ser tão ou mais importante que nos salários, e tende a aprofundar a desigualdade de renda.

Inicialmente, é preciso destacar que a maioria das atividades compreendidas pela revolução digital são realizadas com bens intangíveis, isto é, bens que não possuem existência física, como os softwares. Estes bens intangíveis possuem uma peculiaridade muito importante, que os distingue dos demais bens: uma vez prontos, eles podem ter sua oferta ampliada a custo zero, ou praticamente zero, ao contrário dos bens que possuem materialidade, os bens tangíveis, que compõem as atividades econômicas tradicionais como a produção de sapatos e computadores.

Por exemplo, uma vez que um hipotético aplicativo que emprega inteligência artificial e permite diagnósticos médico com 100% de precisão esteja pronto, a oferta de unidades adicionais deste aplicativo pela empresa que o produz acontece a um custo praticamente nulo, muitas vezes bastando ao comprador clicar em um ícone de download para obter uma unidade, sem que haja custo significativo para o seu produtor. Em termos econômicos, o custo marginal de produção (o custo de produzir mais uma unidade, ou aumento da produção na margem) deste hipotético aplicativo é nulo.

Com bens tangíveis não é assim. Para oferecer mais um par de sapatos ou mais um computador a um cliente interessado em adquiri-los, a empresa que os produz incorre em custos, custos que crescem à medida que ela expande a sua produção. Assim, os custos aumentam nas atividades tradicionais quando aumenta a quantidade produzida. Este aumento no custo de produção em relação ao preço do produto no mercado reduz os lucros e tende, portanto, a impor limites ao crescimento da empresa.

Isso é importante, pois a limitação de tamanho dificulta que poucas empresas concentrem toda a oferta de um produto, o que lhes permitiria cobrar preços mais elevados sem sofrer concorrência, e obter margens de lucros maiores do que aquelas que efetivamente obtêm sob concorrência. Por conseguinte, a elevação do custo marginal é um fator importante (embora não seja o único) a limitar o crescimento das empresas, podendo garantir assim que haja sempre um número elevado de empresas competindo entre si, o que resulta em preços mais baixos e margens de lucro mais reduzidas.

Contudo, no caso dos produtos intangíveis não há elevação do custo marginal. A produção pode ser ampliada a um custo praticamente nulo. O resultado é uma tendência à concentração da produção em poucas empresas, que obtêm margens de lucro elevadas, concentrando em si os lucros.

Para entender como isto acontece, considere o fato de que o custo médio de desenvolvimento de um aplicativo de celular gira em torno de 200 mil dólares, ou aproximadamente 1 milhão de reais. Vamos supor que este tipo de aplicativo pode ser baixado por R$ 20. Se uma empresa fabricante conseguir 60.000 downloads, sua receita será de aproximadamente 60.000 x R$ 20, ou R$ 1.200.000 (estou desconsiderando despesas como impostos, para simplificar). Seu lucro, simplificando, será então R$ 1.200.000 de receitas menos 1 milhão gastos no desenvolvimento do aplicativo, ou seja, R$ 200.000.

Mas vamos imaginar que uma outra empresa desenvolveu com o mesmo custo de 1 milhão outro aplicativo, que atende de forma mais eficaz às preferências dos usuários, e em razão disto se tornou um campeão de vendas, com um milhão de downloads. Neste caso, a receita desta segunda empresa será de 1 milhão x R$ 20, o que dá R$ 20 milhões, e seu lucro será de R$ 19 milhões (R$ 20 milhões de receita menos R$ 1 milhão de custos de desenvolvimento do aplicativo), muito acima dos R$ 200 mil da primeira empresa.

O que este exemplo ilustrativo mostra é que a competição entre empresas que participam da revolução digital acontece por meio de produtos inovadores, que se tornam campeões de vendas e com isso geram lucros muito maiores do que os lucros dos seus concorrentes. Neste caso, não se trata da tradicional competição por preços, em que as empresas se esforçam para oferecer quantidades crescentes aos menores preços possíveis, dado que os seus custos aumentam quando aumenta a quantidade vendida.

O resultado desta competição por produtos inovadores é que são poucas as empresas digitais campeãs de vendas, que crescem muito em relação às demais, e que vão concentrar os lucros. Concentrando os lucros, estas poucas empresas vão beneficiais apenas seus proprietários, acionistas, executivos e trabalhadores de elite (veja o artigo da semana passada), contribuindo assim para concentrar a renda. O leitor deve estar se perguntando: mas, se a competição é por produtos inovadores, pode surgir um inovador com uma inovação melhor do que aquela que tornou a grande empresa campeã de vendas, derrubar as vendas desta última e ajudar a desconcentrar os lucros.

O problema é que as evidências mostram que há pouca rotatividade de empresas campeãs de vendas. Isto se deve principalmente ao fato de que há custos em se trocar de produto quando ele incorpora softwares, porque estes produtos exigem aprendizado para serem utilizados por consumidores ou empresas clientes: são os chamados custos de mudança (do inglês switching costs). Estes custos criam barreiras para novos produtos no mercado. Os leitores que já tiveram de trocar de fabricante de celular já experimentaram os custos de mudança.

A revolução digital vai concentrar salários e lucros.

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