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domingo, 24 de março de 2024


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Ronaldo Fiani

COLUNISTA

Ronaldo Fiani

Liberdade de Comércio, Ma Sii Prudente!


Ronaldo Fiani


Recentemente, a defesa da liberdade de comércio tem assumido um caráter bastante estranho, ao menos para os economistas que prezam a sua formação profissional. De recomendação para o comércio exterior dos países a ser adotada sob certas condições (como é o caso em todas as recomendações de política econômica, pois em economia tudo depende da análise da situação concreta), passou a ser considerada uma espécie de bandeira ideológica conservadora.

É como se a sugestão de medidas de proteção comercial da indústria do país (por tarifas de importação mais altas, por exemplo) fosse uma demanda de esquerda. Curiosamente, o ex-presidente e atual candidato à presidência dos Estados Unidos Donald Trump, que é o candidato conservador na disputa é um protecionista fervoroso, tendo adotado medidas protecionistas em seu primeiro mandato, e declarado recentemente que, se for eleito, adotará uma tarifa de importação de 100% para automóveis estrangeiros ( https://edition.cnn.com/2024/03/16/politics/trump-bloodbath-auto-industry-election/index.html) .

Ocorre que não existe verdade absoluta em economia, pois todos os resultados obtidos pela análise econômica dependem do tipo de mercado estudado, e isto acontece também com relação a propostas liberais, ou seja, com relação a propostas de livre comércio, que envolvem redução ou eliminação de tarifas de importação, e de quaisquer outras limitações ao comércio. Com efeito, a vantagem do livre comércio depende do que os economistas chamam de estrutura dos setores da economia envolvidos nas transações comerciais. Existem vários tipos de estrutura, mas, para o nosso caso, basta considerar dois tipos de estrutura: a estrutura competitiva e a estrutura concentrada.

No caso da estrutura competitiva, o número de empresas produzindo no setor é tão grande e, assim, a competição tão intensa que força as empresas a cobrarem o preço mais baixo possível, isto é, o preço que é apenas suficiente para cobrir os custos e obter um lucro igual ao dos demais setores que empregam o mesmo volume de capital (se o preço não fosse suficiente para gerar este lucro, as empresas deixariam o setor, e o preço se elevaria até gerar o lucro necessário).

No caso da estrutura concentrada, por outro lado, o número de empresas é pequeno, com isto a concorrência não é intensa e as empresas conseguem cobrar um preço elevado, que depois de cobrir os custos ainda deixa um lucro que é bem maior do que aquele que seria necessário para apenas manter as empresas no setor. Os economistas chamam este lucro, que excede o suficiente para manter as empresas no setor de lucro extraordinário.
Ocorre que a estrutura dos setores está fortemente relacionada às tecnologias empregadas pelas empresas. Setores que empregam tecnologias mais simples em geral são competitivos, porque se houver poucas empresas e os preços forem elevados, gerando lucros extraordinários, será fácil ingressar no setor reproduzindo as tecnologias empregadas, justamente porque elas são simples, se aproveitando também destes preços elevados e auferindo lucros econômicos. Com isto, a oferta neste hipotético setor vai aumentar e os preços vão cair, até que os lucros econômicos desapareçam.

Já setores que empregam tecnologias mais sofisticadas são concentrados, pois é difícil reproduzir as tecnologias empregadas e ingressar no setor, mesmo que as poucas empresas nele estejam obtendo lucros extraordinários. Um dos principais motivos para esta dificuldade é que, se a tecnologia é complexa, existe um processo de aprendizado dentro da empresa, que leva tempo, o chamado aprender fazendo (do inglês learning by doing). Este aprender fazendo não apenas garante o funcionamento adequado da tecnologia em questão, mas gera novos conhecimentos tecnológicos, que muitas vezes permanecem sem ser descritos em livros, ou em artigos acadêmicos. Assim, leva tempo para aprender a fazer um avião de passageiros de grande porte, um microcircuito de última geração ou um carro elétrico.

Além disso, é preciso que a região onde as empresas de tecnologia sofisticada se localizam disponha de uma infraestrutura de universidades e laboratórios, dotada de um corpo de cientistas, técnicos e engenheiros capaz de ajudar a corrigir problemas e gerar novos conhecimentos tecnológicos, de forma que as empresas se mantenham na vanguarda da tecnologia e preservem a distância em relação a concorrentes potenciais.

O que isto tem a ver com liberalismo? Isto significa que se as empresas tecnologicamente mais sofisticadas, que atuam em setores concentrados e cobram preços mais elevados, obtendo lucro extraordinários exportam para outros países, elas extraem estes lucros extraordinários desses outros países, que assim se empobrecem. Adotar liberdade de comércio neste caso e desistir de estimular a indústria nacional significa admitir a redução da renda do próprio país, sem qualquer contrapartida.

Qual a melhor política para enfrentar este tipo de situação? Há uma grande controvérsia a respeito entre os economistas, e seria necessário um espaço muito maior do que estes artigos permitem para discutir as possibilidades, mas, assim como no caso do liberalismo, qualquer proposta depende de um exame mais profundo. A proposta de Trump de tarifas de 100% sobre o valor de automóveis importados, se não for mera promessa de campanha, parece uma resposta simplista para um problema que demanda maior análise.

Em resumo, não se deve adotar o liberalismo como um dogma abstrato, mas avaliar propostas liberais de acordo com a situação: liberdade de comércio, ma sii prudente.

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