Danielle Monteiro (Informe Ensp)
Estudo da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), realizado em parceria com a Escola de Saúde Pública de Harvard (Harvard T. H. Chan School of Public Health) e a Escola de Economia e Ciências Políticas de Londres (London School of Economics and Political Science), revelou elevado índice de Covid longa autorreferida na cidade do Rio de Janeiro, além de altas prevalências de sintomas associados à síndrome pós-Covid, tais como fadiga, dor articular e comprometimento cognitivo. Os dados também mostram que, contraditoriamente, a síndrome permanece invisibilizada nos serviços de saúde, misturando-se a outras demandas que se apresentam, indicando que os pacientes não conseguem obter os cuidados necessários e os serviços de saúde não estão preparados para cuidar deles. A pesquisa apontou, ainda, que, apesar do alto custo da Covid longa para indivíduos, famílias e sociedade, a conscientização e compreensão sobre essa condição são muito baixas.
A pesquisa Cuidado de saúde à Covid longa: necessidades, barreiras e oportunidades no município do Rio de Janeiro visou construir evidência para fortalecer o cuidado à síndrome pós-Covid no SUS. Para tal, o estudo avaliou a prevalência de sintomas pós-Covid, assim como as necessidades e uso de serviços de saúde. Buscou também identificar os fluxos de cuidado, barreiras e oportunidades para o cuidado à Covid longa, além de compreender os impactos na saúde, sociais e financeiros de se viver com a síndrome. Os dados foram coletados entre novembro de 2022 e abril de 2024.
Também conhecida como Covid longa, a síndrome pós-Covid é uma condição crônica associada à infecção (CCAI), que pode se desenvolver após uma infecção por SARS-CoV-2, podendo durar de três meses até anos. A síndrome pós-Covid envolve entre um a vários sintomas, que podem variar ao longo do tempo. Os pacientes também podem apresentar danos em órgãos.
“O projeto, envolvendo métodos mistos, constituiu-se em uma iniciativa internacional, interdisciplinar e com engajamento de pacientes, com vistas a estimar a prevalência de Covid longa, a partir de uma amostra probabilística de pacientes que foram hospitalizados por Covid-19 em hospitais do SUS, na cidade do Rio de Janeiro. O estudo buscou, especialmente, identificar as necessidades, o uso e as barreiras de acesso aos serviços de saúde. No componente quantitativo do estudo, realizamos 651 entrevistas com pacientes hospitalizados durante o quadro agudo da doença ou, em alguns casos de óbito ou dificuldade de participação direta dos pacientes, com seus representantes. O componente qualitativo, por sua vez, incluiu 29 entrevistas com gestores e profissionais de saúde da rede, além de 31 entrevistas sobre a experiência de pacientes vivendo com a Covid longa, independentemente de hospitalização prévia”, conta a pesquisadora da ENSP e coordenadora do projeto no Brasil, Margareth Portela.
Integrante da Colaborativa de Pesquisa Liderada por Pacientes (Patient-Led Research Collaborative) e pesquisadora-paciente no estudo, Letícia Soares destaca que a inclusão de pessoas com vivência da doença em pesquisas é crucial para que pesquisadores compreendam melhor os impactos da doença e definam formas mais eficazes de estudá-los: “Isso torna as pesquisas mais eficientes e precisas, e contribui para o desenvolvimento de soluções mais transformadoras para os pacientes.”
Alta prevalência de sintomas
Os resultados da pesquisa apontaram alta prevalência de sintomas pós-Covid: 91,1% dos entrevistados relataram, pelo menos, um sintoma; e 71,3% afirmaram vivenciar pelo menos um sintoma frequente. Do total de entrevistados, 39,3% autorreferiram síndrome pós-Covid, mas, apenas 8,3% tiveram um diagnóstico de Covid longa de um profissional de saúde. Também foi observada elevada mortalidade (12%) entre a alta do paciente e o seu recrutamento para o estudo até dois anos depois.
Os cinco sintomas pós-Covid mais comuns foram: fadiga, mal-estar pós-exercional (piora ou surgimento de sintomas entre 24 e 72 horas após esforço físico ou cognitivo), dor nas articulações, alterações no sono e comprometimento cognitivo. Ainda como sintomas de alta prevalência (desenvolvidos em mais de 25% dos entrevistados), foram relatadas dormência, ansiedade e depressão.
Alta prevalência de necessidade de serviços de saúde
A pesquisa revelou que aproximadamente 50% dos participantes relataram precisar de serviços de saúde para condições que apareceram ou pioraram após a Covid-19 nos seis meses anteriores à entrevista.
Os serviços mais necessários entre os participantes que relataram precisar de cuidado de saúde foram: atendimento médico especializado, farmácia, cuidados ambulatoriais na atenção primária e serviços laboratoriais. “A necessidade de atendimento médico especializado e de internação/emergência, em especial, foi associada ao autorrelato de síndrome pós-Covid”, observam as pesquisadoras.
Na análise de serviços de saúde específicos, os resultados apontaram alto nível de utilização entre os entrevistados que relataram precisar de cuidados primários de saúde (89,2%) e atendimento hospitalar de emergência (95,8%), na maioria das vezes por meio do SUS (95%). Embora o atendimento médico especializado tenha sido usado por 81,7% dos participantes que relataram precisar dele, mais da metade (55,3%) usou prestadores privados.
Dificuldades no acesso ao cuidado
Conforme indicaram os resultados, quase metade das pessoas que relataram precisar de uma clínica pós-Covid ou de um serviço de reabilitação não teve acesso a eles (47,7%), sendo que muitos não sabiam da existência de clínicas pós-Covid na cidade do Rio de Janeiro.
Foi observada, ainda, uma alta porcentagem de entrevistados que relataram precisar de cuidado de saúde mental, mas não conseguiram usar o serviço (43,1%). Quando acessado, o cuidado à saúde mental ocorreu, principalmente, em prestadores privados (70,9%).
Foram encontrados diversos fatores que obstruíram o acesso ao cuidado à síndrome pós-Covid na atenção primária e especializada. Entre eles, aumento da desigualdade social e seu impacto sobre o SUS; sobrecarga do sistema de saúde; falta de um protocolo claro para diagnóstico e encaminhamento; e desejo dos profissionais de saúde, fortemente impactados pela pandemia, de seguir em frente com relação à Covid. Outros desafios observados foram a coleta de dados e vigilância inadequadas; falta de conhecimento dos profissionais sobre a síndrome pós-Covid; e falhas gerais do sistema de encaminhamento.
Os resultados indicaram, ainda, que alguns desses fatores também impediram a prestação de cuidados pós-Covid para pacientes com acesso bem-sucedido à atenção primária e/ou especializada. “Sem treinamento ou um protocolo claro para o tratamento e gerenciamento da síndrome pós-Covid, os médicos estavam mal equipados para oferecer um atendimento efetivo. Para os pacientes acompanhados na atenção especializada, os problemas de comunicação entre os serviços tornaram a coordenação do cuidado pela equipe da atenção primária quase impossível. Além disso, nem os gestores nem os profissionais da linha de frente tinham conhecimento das notas técnicas emitidas pelo Ministério da Saúde desde o final de 2021”, afirmam as pesquisadoras.
Pesquisadora do estudo e pós-doutoranda da ENSP, Bárbara Caldas conta que foram encontrados conhecimento limitado dos profissionais de saúde sobre os sintomas de Covid longa e ideias equivocadas, como descrença sobre a real existência da síndrome e uma tendência em encaixar os sintomas trazidos pelos pacientes como psicológicos. “Por isso, destacamos que mais capacitação, treinamento e educação continuada podem contribuir para aumentar a conscientização das equipes de saúde sobre como identificar e cuidar de pacientes com Covid longa”, defende.
Mudança radical na vida
Os achados revelaram que a síndrome pós-Covid causou uma mudança radical na vida das pessoas que convivem com essa condição.
Entre os impactos negativos, foram encontrados os seguintes: impossibilidade de trabalhar ou necessidade de reduzir as horas de trabalho, com raro acesso a benefícios formais/licença médica; inviabilidade de realizar atividades da vida diária; e impossibilidade de acessar os cuidados necessários por meio do SUS, com gastos frequentes da renda reduzida em serviços privados e medicamentos.
Diante dos resultados preocupantes, as autoras do estudo defendem o fortalecimento do cuidado à síndrome pós-Covid no SUS. “O preparo do sistema de saúde para identificar e cuidar de pacientes com Covid longa traria benefícios mais amplos, inclusive, para outras CCAIs negligenciadas”, concluem.
Cuidado público de saúde para o enfrentamento das desigualdades sociais
Segundo as autoras do estudo, estima-se que a Covid longa afete milhões de brasileiros, com um impacto desproporcional sobre as populações marginalizadas que já enfrentam dificuldades para ter acesso a cuidados de saúde de qualidade. Por esse motivo, elas defendem que o cuidado público de saúde para a síndrome pós-Covid é essencial para o enfrentamento das desigualdades socioeconômicas e de saúde: “Sem o cuidado adequado, a saúde dos pacientes vai piorar. Eles podem não conseguir trabalhar para sustentar a si mesmos ou suas famílias, o que, por sua vez, pode aumentar a dificuldade de obter o cuidado necessário”.
Conforme explica a pesquisadora do estudo Emma-Louise Aveling, da Universidade de Harvard, a Covid longa é, de certa forma, ‘nova’, se for analisada como uma condição que surgiu recentemente, durante a pandemia de Covid-19. Mas, quando levados em consideração aspectos importantes, constata-se que a síndrome pós-Covid não é nova. “Na verdade, existem várias Condições Crônicas Associadas à Infecção (CCAIs) desencadeadas por doenças endêmicas no Brasil. Outro fator que também não é novo, tragicamente, é a história de apagamento e invisibilização das pessoas que vivem com a doença e as injustiças e danos ao seu direito a uma qualidade de vida digna”.
Emma-Louise defende que, embora alguns desafios sejam específicos do sistema de saúde brasileiro, algumas soluções para garantir um cuidado equitativo e de qualidade para a Covid longa podem e devem ser compartilhadas globalmente: “Essas necessidades globais exigem esforços colaborativos renovados em prol da equidade na saúde em escala internacional e nacional”.
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