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domingo, 13 de julho de 2025


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Domingo e o rádio de pilha

Mário Donato D’Angelo - @mariodonato.dr

Arquivo Pessoal
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Domingo, para uma criança solta num hotel em Petrópolis, era um bicho comprido. Um tempo sem pressa, em que a cidade parecia coberta por um véu de silêncio. As lojas não abriam, os adultos sumiam por trás dos jornais, e a infância ficava ali, sentada no degrau da tarde, sem nada o que fazer.

Havia algo triste nos domingos de antigamente, como se o mundo inteiro se recolhesse para pensar nos seus pecados. Mas havia também uma pequena epifania tecnológica que quebrava esse silêncio: o rádio de pilha.
Era um Spika, ou Spica, era como a gente chamava. Japonês, portátil, milagre moderno. Cabia na mão de um porteiro, e era justamente o porteiro do hotel de minha avó quem assumia a missão de guiar a tarde pelo som. Postava-se à entrada, atrás do balcão, como um monge distraído, radinho colado ao ouvido, com o olhar perdido em coisa nenhuma. E lá dentro, o mundo rugia: bla-bla-gol-bláááááá-lateral-blá-blá-zagueiro-escanteio!!

A narração parecia vir de dentro de um poço: embolada, abafada, ligeiramente acelerada. E ainda assim, havia quem a entendesse inteira, bastava colar o ouvido ao pequeno alto-falante, feito confessor atento.

Eu, menino, só ouvia o caos: nomes sem rosto, gols sem imagem, lances sem lógica. Aquele som, para mim, não era futebol. Era um réquiem ao final da tarde! E, no entanto, era também uma convocação misteriosa, como se o radinho soprasse:

“Cresça depressa, garoto, o mundo te espera!”

O domingo ia morrendo devagar, e o Spika tocava sua missa portátil. Um jogo que se desenrolava em outro plano de realidade, para o qual eu não tinha ingresso.

E havia uma sensação: uma sensação que me dizia sem palavras: não é hoje que a vida começa Era como se o tempo estivesse de castigo, de frente para a parede, aguardando ordem superior para voltar a correr.

Na portaria, o porteiro escutava o jogo como quem escutava um segredo de Estado. Eu observava em silêncio, com inveja e certo temor. Aquilo era coisa de adulto, saber ouvir aquele ruído e entender. Aquilo era o mundo, acontecendo em ondas curtas, que passavam por mim sem pousar.

Depois, a noite chegava de mansinho. O porteiro desligava o rádio, dava um suspiro e a cidade se apagava junto. Os passos ficavam raros, o saguão se esvaziava, e eu, com os olhos na escada, pensava que talvez a vida fosse só isso: uma tarde de domingo sem gols...

Às sete, o cheiro de sopa subia pelos corredores: caldo de galinha com arroz, receita infalível contra melancolia. A cozinheira, Dona Alzira, servia em tigelas fumegantes que pareciam planetas girando em órbita lenta. Eu me consolava: se o futebol falhara, o caldo era sempre vitória de goleada.

Mas hoje, quando ouço um chiado antigo, a voz distorcida de um narrador empolgado, o grito de gol vindo de um rádio amarelado num domingo de chuva, eu me arrepio

Não tenho saudade daquele tipo de pilha, daquela espera abafada, daquela infância colada à porta do hotel, enquanto o mundo parecia acontecer em outro lugar. Mas guardo ternura pelo garoto que eu era, especialista em ouvir silêncios, doutor em desperdiçar horas, aprendiz de eternidades.

E então, me lembro de Paulo Mendes Campos, dizendo que “a infância é dura de matar”; ou de Rubem Braga, que transformava esperas em passarinhos de papel. Penso neles e no porteiro budista do hotel, guardião de um Spika que, sem saber, ensinava metafísica sobre a solidão dos domingos.

Claro que sempre há um ensinamento, entender, que a existência, às vezes, se resume a um chiado teimoso e a um jogo sem gols. E que, ainda assim, vale a pena atravessar a rua, largar o radinho na portaria, inventar um sorriso e correr para o campo aberto do resto da semana.

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