Mário Donato D’Angelo - @mariodonato.dr
Petrópolis, para mim, nunca foi apenas uma cidade. Foi berço, personagem, professora. Aqui aprendi a andar, entre ladeiras, neblinas e histórias sussurradas nas mesas de café ao entardecer. E agora, tantos passos depois, volto escrevendo
Mas antes dos meus passos, vieram outros. Meu avô, João D’Angelo, atravessou o oceano vindo da Itália, sozinho, ainda jovem, e fincou raízes profundas nesta terra que tanto amou. Homem de feitos doces literalmente, criou os célebres caramelos D’Angelo e, com os irmãos que vieram aos poucos, construiu a Casa D’Angelo. Moldou uma memória gustativa que adoça até hoje o imaginário petropolitano.
Ao lado de João, Dona Tita minha avó, descendente de alemães, foi o coração prático da família. Forte e afetuosa, organizava a vida dos irmãos D’Angelo como quem rege uma orquestra de afetos e compromissos.
Dessa união nasceu meu pai, Donato D’Angelo, médico ortopedista que marcou gerações em Petrópolis. Com mãos firmes e olhar atento, cuidava de ossos e de histórias humanas. Era referência em centros maiores, mas nunca abandonou sua cidade. Criou-se como eu, no Hotel Dom Pedro. Foi lá, entre o aroma de madeira encerada que aprendi a imaginar o mundo.
Nesta cidade imperial, onde ressoam as memórias do Brasil e os ecos dos teares, houve um tempo em que Petrópolis foi o maior polo têxtil da América do Sul. O país vestiu-se de “futuro” com tecidos fiados aqui. Cresci nesse chão fértil de fábricas, apitos e tardes frescas na serra. Entre varandas e varais, fui construindo o meu olhar.
Andei por outros cantos, estudei, pesquisei. Mas Petrópolis nunca saiu de mim. Está tatuada na alma como aquelas marcas do tempo que nem o tempo se atreve a apagar.
E por falar em raízes profundas, falo de Dona Wanda, minha mãe. Mora em Petrópolis, viva, firme, prestes a completar 98 anos, embora insista em ultrapassar os 100 com a elegância debochada de quem diz: “só paro quando quiser”. Diariamente, percorre a cidade em sua cadeira de rodas, conduzida com afeto por sua fiel escudeira, Mônica. E não pense que são passeios contemplativos. Dona Wanda exige sua parada ritual na Casa D’Angelo, onde brinda com um chopinho à vida, à cidade e à teimosia de quem não se despede sem aplausos.
Hoje, quem passa por ali vê um sorriso teimando contra o tempo, e talvez nem imagine que, por trás daquela taça de chope, pulsa a força de uma era.
Fui convidado pelo Diário de Petrópolis a ocupar este espaço aos sábados, com a liberdade rara de falar sobre o que me move. Agradeço com alegria, a confiança deste convite, poder escrever para minha cidade, a partir dela e sobre ela.
Sou médico, pesquisador e cronista por necessidade de expressão. Já estudei o andar humano com sensores, frequências e fórmulas. Mas tudo começou observando senhores caminhando devagar na Praça da Liberdade e crianças correndo sob a chuva no Valparaíso.
Hoje, ainda vejo senhores na praça. Alguns mais lentos, outros mais distraídos. As crianças? Agora correm com celulares nas mãos, perseguindo pokémons que eu não entendo. Mas o movimento continua sendo poesia para quem sabe olhar.
Aqui, escreverei de tudo um pouco. Das lembranças da infância vivida num hotel à reflexão sobre as quedas da velhice, essas que vêm de dentro, mas também do lado de fora. Contos, ciência, memória e crítica. Esta coluna será um espelho talvez torto no qual a cidade possa se reconhecer.
Que nossos encontros semanais sejam como uma pausa na caminhada. Como um banco de praça onde possamos sentar juntos e pensar a vida, entre passos e palavras.
Veja também: