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Estados Temporários do Coração

- Mario Donato D´Angelo

Arquivo Pessoal
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“O amor é a tentativa de transformar um acaso em eternidade.” Emil Cioran

Há quem diga que o coração é órgão da persistência. Eu, no entanto, desconfio de outra coisa: o coração é um órgão de transição. Vive de escalas, nunca de destinos finais.

A paixão, por exemplo, é o mais clássico dos estados “pré”.

Pré-amor, pré-juízo, pré-catástrofe.

É quando a gente ainda não ama, mas já perdeu a razão.

Porque chega cheia de promessas, mas, promete mais do que entrega

É o curto-circuito antes da instalação elétrica.

Além do mais, nem toda paixão amadurece. Muitas evaporam como nuvens que se desfazem sem chuva: deixam apenas um peso no ar e uma umidade na alma. Outras se transformam em tempestade, alagam a casa, arrastam móveis, e, quando passam, obrigam a gente a reconstruir os alicerces.

Mas e depois do amor? O que resta quando a casa se esvazia?

O pós-amor é um bicho de muitos disfarces.

Às vezes se veste de amizade improvisada, dessas que trocam livros, mas não olhares.

Às vezes posa de indiferença cordial, mas no íntimo, nem quer saber se o outro ainda respira.

Há também a versão rancorosa, que cultiva ciúmes retroativos e reescreve lembranças para que caibam direitinho na narrativa do trauma.

E o mais perigoso de todos: o pós-amor nostálgico, que surge às duas da manhã, ensaiando confidências que nunca serão enviadas.

Entre a paixão e o pós-amor, porém, existem dezenas de estados temporários do coração. Muitos não têm nome, apenas sintomas:

O “ainda gosto, mas não devo”.

O “já não gosto, mas ainda lembro”.

O famoso “gosto mais de quem eu era quando estava com você”.

Ou o “sinto sua falta, mas não sei se é de você ou da ideia de você”, uma síndrome crônica entre românticos em recuperação.

O coração, esse órgão impontual, nunca respeitou prazos.

Fica preso a pessoas que já mudaram de cidade, de país, de perfume e até de idioma. Reage a nomes que já foram bloqueados. Bate mais forte só porque alguém ligou a trilha sonora certa no momento errado. É um devoto do atraso afetivo, sempre chegando na estação depois que o trem já partiu.


Como lembrou Pablo Neruda, “amar é tão curto, e esquecer é tão demorado”.


O coração conhece bem essa matemática cruel: insiste em encurtar presenças que já se foram e alongar eternidades que duraram apenas minutos.

Mas nem todo amor termina em fracasso. Existem também os raros que permanecem, que descobrem uma forma de resistir ao tempo e às mudanças. São como melodias que não cessam, mesmo quando a orquestra já recolheu os instrumentos.

Tony Bennett* gravou uma linda canção, que pode se resumir numa pergunta essencial: como manter a música viva? Como fazer com que dure além da última nota? É uma analogia da dúvida que vale também para o amor. Porque os anos mudam o ritmo, as pessoas mudam o tom, o coração muda a melodia. E ainda assim, alguns conseguem sustentar a harmonia, improvisar como no jazz, com pequenos gestos, pausas no tempo certo, variações inesperadas. Esses amores provam que, com delicadeza e sorte, a música pode continuar...

E o mais curioso é que esse órgão sentimentalíssimo é tratado, no consultório, pelo cardiologista!

Ele mede pressões, fluxos, conduções elétricas. Enxerga o coração como motor de automóvel: pistões, válvulas, bombas. Mas não ausculta a saudade. Não detecta a ausência. Não prescreve remédios para o vazio. É como se falasse fluentemente a língua da máquina, mas fosse analfabeto nos dialetos do afeto.

De ouvir as arritmias sentimentais, de interpretar taquicardias afetivas, de compreender os sopros nostálgicos e de receitar, sem ironia, silêncio e distância. Um profissional habilitado a diferenciar dor no peito de coração partido.

Porque, veja bem, o que mata o coração não é só o infarto.

Às vezes é uma mensagem não respondida.

Às vezes é a notificação que não chega.

Às vezes é o sumiço de quem prometeu ficar.

E talvez seja exatamente isso que define o coração: um órgão que nunca se instala em definitivo. Ele vive em trânsito.

Paixão é partida, amor é chegada, pós-amor é escala, e a vida afetiva inteira não passa de um grande terminal de embarque. Uns chegam atrasados, outros perdem a conexão, alguns embarcam na hora certa, mas todos, invariavelmente, partem

Então, da próxima vez que lhe perguntarem se você está apaixonado, amando ou superado, responda com sabedoria:

“Estou em trânsito.”

Pois o coração humano não é porto, nem casa.

É estação de trem: quem chega parte, quem parte deixa rastro, mas confiante, porque sempre há um próximo embarque à espera

*  HOW DO YOU KEEP THE MUSIC PLAYING?

(Alan & Marilyn Bergman, Michel Legrand)

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