Pe. Anderson Alves
Após termos percorrido os contornos históricos e espirituais de De Trinitate, mergulhamos agora em seus temas centrais e no método peculiar com que Agostinho os aborda. Muito mais do que uma obra conceitual sobre o mistério da Santíssima Trindade, o tratado expressa a tensão entre o inefável e o racional, entre a fé e o desejo humano de compreender.
Já nos primeiros capítulos, Agostinho apresenta o escopo teológico de sua investigação. Três grandes questões estruturam o fio condutor da obra:
Por que, ao professarmos que o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus, não afirmamos que existem três deuses, mas um único e verdadeiro Deus?
Se as operações externas da Trindade (ad extra) são inseparáveis, por que apenas o Filho se encarnou? Por que apenas a voz do Pai foi ouvida no batismo? E por que somente o Espírito Santo apareceu visivelmente sob a forma de uma pomba?
Quais são as propriedades pessoais do Espírito Santo, que não é gerado como o Filho, mas procede do Pai e do Filho? Como entender essa procedência como expiração e não geração?
Agostinho reconhece desde o início a complexidade dessas questões e admite: “Preocupa-os também o fato de que o Espírito Santo esteja na Trindade e não foi gerado nem pelo Pai nem pelo Filho, mas é o Espírito do Pai e do Filho... Ensaiaremos responder a estas dificuldades” (De Trinitate, I, 5, 8). A sinceridade com que enfrenta tais mistérios mostra sua fidelidade à fé, mas também sua ousadia filosófica.
No final da obra, Agostinho explicita os destinatários de seu esforço intelectual: “Que essa seja a Trindade, devemos demonstrar agora, não só para os que creem, apoiados na autoridade da Escritura divina, mas também para os homens dotados de entendimento, apoiados em argumentos de razão, isso se pudermos. Dizemos: ‘Se pudermos’ e a razão disso, o próprio discurso explicará melhor, quando começarmos a investigação” (De Trinitate, XV, 1, 1). A obra se destina, assim, tanto aos crentes quanto aos pensadores, propondo-se a uma justificação racional da fé sem, no entanto, pretender esgotar o mistério divino.
Esse equilíbrio entre fé e razão atravessa toda a abordagem de Agostinho. Ele escreve com a consciência de que o mistério trinitário está além da compreensão humana plena. Como lemos em suas Confissões: “Rara é a alma que, falando da Trindade, sabe de que coisa fala” (XIII, 11, 12). Em De Trinitate, ele reforça: “[] em quem devemos pensar sempre e não consegue compreendê-lo tal como ele é [...]” e acrescenta: “[] a quem palavra alguma é capaz de dá-lo a conhecer” (V, 1, 1). A linguagem humana, portanto, é uma tentativa limitada de tocar o inefável.
Seu método teológico é bem resumido no binômio: Credo ut intelligam, intelligo ut credam “Creio para entender, entendo para crer.” É uma dinâmica viva e circular entre fé e razão: “A fé busca, o entendimento encontra; por isso diz o profeta: ‘Se não crerdes, não entendereis’ (Is 7,9). Doutro lado, o entendimento prossegue buscando aquele que a fé encontrou [...] Logo, é para isto que o homem deve ser inteligente: para buscar a Deus” (De Trinitate, XV, 2, 2).
Trapé identifica quatro elementos fundamentais no método agostiniano:
Humildade e adesão firme à fé, especialmente à autoridade de Cristo, mediada pela Escritura, pela Tradição e pela Igreja: ““Essa é também a minha fé, porque essa é a fé católica” (De Trinitate, I, 4, 7).
Desejo ardente de compreender a fé, incentivando o estudo atento da Escritura, da filosofia e da história.
Consciência profunda do mistério de Deus, o que implica reconhecer os limites da razão e a transcendência divina.
Subordinação da teologia à caridade e à contemplação, unindo o saber teológico à vida espiritual.
Esse método é cuidadosamente construído para evitar distorções fantasiosas. Agostinho alerta: “a alma ao crer no que não vê, não imagine coisas irreais”. E acrescenta: “porque se pretende compreender, quanto é possível, a eternidade, igualdade e unidade da Trindade, antes é preciso crer e vigiar para que nossa fé não seja falsa” (De Trinitate, VIII, 4, 6). O que se busca, segundo ele, “é saber por meio de quais semelhanças e comparações conhecidas cremos” (VIII, 4, 8).
De Trinitate, portanto, não é apenas um tratado teológico; é um caminho de conversão intelectual e espiritual. Ele nos lembra que entender a Trindade é menos uma questão de lógica e mais um convite à humildade, ao amor e à contemplação. Agostinho convida o leitor não a decifrar um enigma divino, mas a deixar-se transformar pela busca sincera do Deus Uno e Trino.
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