Edição anterior (3772):
terça-feira, 18 de fevereiro de 2025


Capa 3772

Gerundismo: a forma de falar que chegou e ficou

Lenilson Ferreira -  Psicanalista

Foto: Freepik
Foto: Freepik

Uma nova forma de falar sobre o futuro se instalou entre nós por volta dos anos 1990. Adotamos, sem que muitos percebessem, talvez a maioria de nós, uma nova forma de nos referirmos às ações que serão realizadas ou se realizarão neste tempo. A forma clássica com que nossos avós descreviam o porvir foi preterida em função deste novo falar. Reinventou-se o discurso do futuro.

Esta nova forma de falar é chamada, pelos gramáticos, de gerundismo. Consiste no clássico modelo de utilizar-se o verbo auxiliar estar e outro verbo de ação, acrescido do sufixo ndo.Estaremos enviando a mensagem em breve. Esta é a nova forma de descrever-se uma ação futura. Enviaremos a mensagem em breve. Esta é a forma clássica, que vem perdendo terreno aceleradamente para o novo modelo.

O meio acadêmico entende que este novo falar é consequência de uma herança indevida da língua inglesa. Trata-se, diz-se, de uma tradução mal feita de uma estrutura verbal corriqueira em língua inglesa. We Will be sending the message soon.Este contexto expressa uma ação futura, embora também pareça expressar uma ação em curso, que é tipicamente expressa pelo tradicional gerúndio.

A mais detalhada história do surgimento e trajetória da palavra gerúndio que encontramos em nossa pesquisa está no The Shorter Oxford English Dictionary on Historial Principles. Esta fonte apresenta a etimologia da palavra, remetendo-nos à ideia de movimento. Admite-se que a palavra gerúndio tenha surgido na língua inglesa no ano de 1513, vinda do latim tardio, sob a forma gerundium, o que significa seu surgimento entre o ano 200 e o ano 600 d.C. Gerundium deriva de gerundum que, por sua vez, tem sua origem em gerere, que, em latim, significa levar adiante, continuar (em inglês, carryon). Vemos, assim, que na palavra está implícita a ideia de movimento. Esta informação a respeito da palavra é de suma importância para este ensaio, porque partilhamos com David Zimerman do ponto de vista de que a etimologia de uma palavra expressa sua concepção na mente de um povo e é uma manifestação do inconsciente coletivo. O psicanalista e psiquiatra gaúcho pensa que a etimologia pode ter a mesma função que a narrativa dos mitos.

A Wikipédia, enciclopédia virtual,difundida pela internet, define o gerundismo como o uso de “uma locução verbal que consiste no uso sistemático de verbos no gerúndio, estigmatizada, porém, graças ao preconceito linguístico, uma vez que a construção está de acordo com sintaxe do português, sendo absolutamente gramatical.” Vale, contudo, discorrer sobre as tantas discussões a respeito da falta de rigor de muitas contribuições nela publicadas, nesta enciclopédia virtual. Ela define o preconceito linguístico como “uma forma de preconceito a determinadas variedades linguísticas” e afirma que, para a linguística, “os chamados erros gramaticais não existem nas línguas naturais, salvo por patologias de ordem cognitiva. Ainda, segundo esses linguistas, a noção de correto imposta pelo ensino tradicional da gramática normativa originam (sic) um preconceito contra as variedades não-padrão”. Observe-se que a enciclopédia declina de esclarecer a quais linguistas se refere.

A enciclopédia virtual fornece-nos, também, uma nova explicação para as origens deste falar entre nós e defende a sua validade: “O uso excessivo do recurso especialmente por operadores de telemarketing estigmatizou seu uso e provocou muita polêmica quanto a sua correção, apesar de estar presente em diversos níveis sociais, até mesmo em falas do então Ministro da Saúde José Serra, que pronunciou numa entrevista: A outra vacina que vamos estar aplicando amanhã.”

Esta é a nova ordem do falar sobre o futuro. Importamos um modelo e o difundimos rapidamente. Ele está consolidado e, por ora, não é possível prever que novos modelos engendrará, se é que os engendrará. O fato é que geramos uma nova forma de reportar ações futuras planejadas. Consequentemente, é inegável que o nosso olhar sobre o futuro esteja também influenciado, alterado e modificado.

Estima-se que este modo de falar sobre o futuro seja oriundo dos meios de treinamento empresarial. Entretanto, ele logo se difundiu país a fora. Percebemos, nas nossas pesquisas de campo, que muitos falantes utilizam-se desta forma, aparentemente desejosos de expressar-se melhor, de falar em um nível de linguagem acima do coloquial. Estaremos enviando. Vamos enviar. Enviaremos. A primeira forma parece soar a estes falantes como a melhor, a mais culta e superior. É comum vermos falantes que se utilizam desta estrutura embora, via de regra, costumem expressar-se de forma despojada, quase que completamente coloquial, mesmo que estejam na formalidade usual do ambiente de trabalho. Acreditamos que estas pessoas queiram, em última análise, falar de forma mais elaborada e tenham a percepção de que o gerundismo lhes dá esta possibilidade.

Por que um novo estilo de falar sobre o futuro saiu dos restritos círculos de treinamento empresarial para ter tão difundida aceitação? Por que aderimos, entusiasmados, a este modo de falar? O que significa este movimento? Este ensaio partiu desses questionamentos.

A fala é a exteriorização, em linguagem verbal, de nossa leitura do mundo. Quando falamos, expressamos nossas percepções conscientes ou inconscientes. Sob o enfoque psicanalítico, estas escolhas não se dão ao acaso, posto serem fundadas, quer seja no processo primário (nível mental inconsciente) ou no processo secundário (nível mental consciente).  O gerundismo, portanto, não acontece por acaso. Este comportamento é marcado por uma base causal, ao invés de ser definido pela casualidade.

Ao utilizar-se do gerundismo, o falante parece buscar transmitir a ideia de agilidade. Estaremos enviando. Estamos enviando. A primeira construção soa quase como a segunda. O futuro foi, portanto, presentificado. O desejo de presentificação do futuro surge em meio ao progresso tecnológico que encurtou o binômio espaço/tempo. A alteração do espaço provocou, concomitantemente, uma alteração da percepção do tempo. As gerações que viveram o ato de escrever, envelopar, selar e postar uma carta foram substituídas pela geração Facebook, na qual basta apertar uma tecla para que uma mensagem seja quase que imediatamente recebida pelo destinatário. Nossa pesquisa nos levou a crer que o desejo inconsciente de acelerar o tempo acabou produzindo no sujeito a ilusão de ser capaz de trazer o futuro para o presente. O gerundismo foi a ferramenta encontrada pelo falante para expressar este desejo, por conter, em sua estrutura, a forma de gerúndio, que expressa uma ação em curso. Houve a fusão do tempo presente com uma ação futura. Criou-se uma aberração gramatical na qual o futuro do presente foi substituído pelo presente do futuro. O futuro que vem para o presente. Não se deseja mais esperar que o futuro seja construído. Quer-se construí-lo agora. A cultura do imediatismo pós-moderno fundiu presente e futuro e é exatamente isto que o falante expressa, quando se utiliza do gerundismo. Exemplo: Estaremos enviando. O falante deseja, além disso, expressar uma aguda eficiência na qual é capaz de fazer agora o que se espera que ele faça apenas no futuro.

Quando dizemos “Estaremos enviando a mensagem em breve” expressamos, paralelamente, dois pensamentos. O primeiro é o pensamento manifesto, que descreve o simples ato de enviar a mensagem. Esta mensagem, contudo, é também constituída por um pensamento latente, subjacente ao enunciado. Uma produção linguística engendrada por instâncias mais profundas do aparelho psíquico. Este pensamento latente expressa a realização de um desejo. O falante deseja expressar sua eficiência e, ao expressar este desejo, já presentifica sua realização. A origem do uso desta estrutura verbal é encontrada nos meios de treinamento corporativo, cujas novas tendências costumam chegar ao Brasil através de especialistas notadamente dos Estados Unidos da América, país cuja imagem de eficiência/evolução/progresso impregna nosso inconsciente coletivo. Vê-se, assim, que o pensamento latente também busca ser a expressão de um desejo inconsciente de equiparar-se àquilo que, no Brasil, nos habituamos a chamar de primeiro mundo, o mundo do progresso.

Edição anterior (3772):
terça-feira, 18 de fevereiro de 2025


Capa 3772

Veja também:




• Home
• Expediente
• Contato
 (24) 99993-1390
redacao@diariodepetropolis.com.br
Rua Joaquim Moreira, 106
Centro - Petrópolis
Cep: 25600-000

 Telefones:
(24) 98864-0574 - Administração
(24) 98865-1296 - Comercial
(24) 98864-0573 - Financeiro
(24) 99993-1390 - Redação
(24) 2235-7165 - Geral