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sábado, 04 de outubro de 2025


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O Andar e Suas Armadilhas

- Mario Donato D’Angelo

Arquivo Pessoal
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Andar parece tão simples. Dois pés, um depois do outro, como quem segue um metrônomo invisível. Mas a ciência e a experiência insistem em nos lembrar: o ato de caminhar é um pequeno milagre da biomecânica. É dança e cálculo, instinto e engenharia. E como todo milagre, é frágil. Basta uma distração, um músculo que enfraquece, um olhar baixo demais, e a vida nos lembra, de maneira muitas vezes dolorosa, que o chão está sempre à espreita.

Com o tempo, o andar se torna traiçoeiro. A juventude nos dá a ilusão de que caminhar é automático, gratuito, eterno. Mas não é. O corpo, como casa antiga, começa a revelar suas infiltrações. O joelho já não absorve o impacto com a mesma elegância, o tornozelo não se ergue tão disposto, a cabeça insiste em se inclinar para frente, como se quisesse bisbilhotar o chão. E nesse gesto aparentemente inocente, o centro de gravidade se desloca, a postura se dobra e o risco se insinua.

O simples hábito de andar olhando para baixo pode se tornar um convite ao tropeço. Quando o pescoço se curva, o olhar se reduz e o corpo se vê obrigado a compensar o desalinhamento. O mundo perde amplitude, a visão do horizonte se apaga, e cada passo vira um jogo de equilíbrio precário. Não é exagero: uma cabeça teimosa pode ser a primeira engrenagem de uma queda.

Outro vilão discreto é a ponta do pé que arrasta. Esse deslizar quase imperceptível denuncia fraqueza muscular ou rigidez nos tornozelos. Cada arrasto é um bilhete para o tropeço, principalmente em calçadas irregulares, tapetes desavisados, degraus esquecidos. Muitas quedas começam assim: um tropeço bobo, um quase nada, que de repente se transforma em ossos quebrados, hospital e semanas de silêncio forçado. O acaso, sabemos, não perdoa distrações.

E como não falar dos joelhos? Esses guardiões silenciosos que carregam nosso peso em silêncio, dia após dia. Quando a musculatura ao redor enfraquece, o joelho vacila. A marcha perde firmeza, os passos ficam inseguros, descompassados, como uma orquestra sem maestro. O corpo, que sempre confiou nesse pilar, de repente percebe que a sustentação já não é garantida. É nesse instante que o risco aparece, não como ameaça distante, mas como possibilidade cotidiana.

Mas o andar não é apenas pernas. Há também os braços, atores secundários que, discretamente, garantem o equilíbrio da cena. Quando deixamos de balançá-los, seja por desatenção, seja por rigidez, o corpo sente. O balanço dos braços é contrapeso, é sinfonia de membros que se respondem. Sem ele, o passo vacila, a estabilidade se reduz, a queda espreita. Curiosamente, incentivar o simples movimento dos braços já é terapia: devolve ao corpo a simetria, à marcha a música.

Esses detalhes, a cabeça que se curva, a ponta do pé que arrasta, o braço que se esquece de balançar, revelam a complexidade escondida no gesto mais comum. Andar é uma negociação entre músculos, articulações e sensores invisíveis que trabalham em harmonia. É um pacto delicado que, rompido por qualquer falha, nos entrega ao risco.

E no entanto, há algo de poético nisso. O andar revela, mais do que a mecânica do corpo, a própria condição humana. Vivemos sustentados por equívocos mínimos, por equilibristas invisíveis que ajustam o passo, corrigem a postura, reequilibram o olhar. Somos, a cada passo, uma vitória provisória sobre a gravidade. Talvez por isso a queda nos cause tanto espanto: ela nos lembra que o chão sempre esteve ali, paciente, esperando a oportunidade de reclamar o corpo que ousou se erguer.

Mas não é preciso viver com medo do chão. É preciso viver com atenção. O passo consciente é resistência, o braço que balança é música, o olhar que se ergue é horizonte. A prevenção não é prisão: é liberdade. É saber que, ao cuidar da marcha, cuidamos também da possibilidade de seguir adiante, firmes, leves, e porque não dizer, com beleza e elegância.

O segredo está em devolver ao ato de andar a dignidade que ele merece. Não é gesto banal: é coreografia cotidiana. Ao caminhar ereto, olhar à frente, deixar que os braços acompanhem o compasso, treinamos não apenas músculos, mas também a esperança de permanecer de pé diante do tempo. E, convenhamos, em um mundo que tanto nos empurra para o desequilíbrio, cada passo consciente é ato de poesia.

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