Mario Donato D´Angelo - @mariodonato.dr
Entre ciência e poesia, um retrato bem-humorado dos horários, caprichos e silêncios da nossa mente.
Nunca recebemos um manual de instruções para o cérebro. Ele nos acompanha desde o primeiro instante de vida, mas vamos aprendendo a lidar com ele aos trancos, como quem descobre, tarde demais, que a orquestra que carrega dentro exige afinação constante. É um órgão magnífico, mas também caprichoso, que ora nos conduz com firmeza, ora se esconde atrás de véus de distração.
Está trancado num sótão escuro, sem janelas, sem portas, sem umidade. Nunca sentiu o vento. Nunca viu a luz. Nunca soube o que é frio ou calor. Tudo o que sabe lhe foi contado. E, ainda assim, é ele quem nos conta o mundo... Percebe o universo em migalhas eletroquímicas. Um sinal aqui, um impulso ali. Uma molécula que alguém traduziu como cheiro. Uma frequência de som transformada em movimento de cílios microscópicos no ouvido. Uma pressão na pele que ele interpreta como abraço, ou como ameaça.
Há dias em que ele desperta como um maestro inspirado, pronto para reger pensamentos claros, ideias vivas, planos audaciosos. Em outros, acorda mais lento, com a mesma disposição de um café esquecido no fogão, e qualquer tentativa de grande sinfonia vira um ensaio tímido. Não é preguiça: é o próprio mecanismo da mente, que acende e apaga luzes internas de acordo com ritmos que nem sempre entendemos.
O cérebro não vê, mas nos dá a visão.
Não ouve, mas nos oferece a música.
Não toca, mas nos presenteia com o arrepio.
Ele não sente o gosto do vinho, mas nos diz se está bom.
É um cego que pinta paisagens.
Um surdo que compõe sinfonias.
Um órfão do mundo que cria, sozinho, a ilusão da existência.
E mesmo assim, cobramos dele tudo.
Pedimos que decida, que calcule, que se emocione, mas com moderação. Que não chore em público! Que escolha bem, que memorize senhas, que entenda os silêncios, que aceite as perdas. Exigimos precisão de algo feito de incertezas.
Queremos que seja racional justo ele, que talvez tenha nascido para sonhar. E não no sentido prático de “planejar”, mas no sentido mais puro: flutuar no irreal, transformar o absurdo em narrativa, fundir símbolos, buscar sentido onde só há metáfora.
E quando chega a hora de guardar memórias, o cérebro exige silêncio e solenidade. Quer um sono profundo, longo, protegido. É nesse descanso que revisita o dia, organiza arquivos, apaga bilhetes inúteis e carimba as páginas que merecem ficar. Negar-lhe esse tempo é como pedir a um bibliotecário que catalogue livros em meio a um vendaval.
O cérebro é, o melhor contador de histórias que já existiu. E como todo bom contador exagera. Dramatiza. Inventa memórias que nunca aconteceram. Se convence de coisas que não são verdade e depois as defende com a teimosia de quem acredita nas próprias lendas.
Ele mente... Mas também ama!
Ama com uma fidelidade quase infantil. Mesmo enclausurado, se ilumina com um beijo no rosto. Reconstrói sinapses ao ouvir “eu te amo” mesmo que não ouça de verdade, apenas receba o eco químico da frase dita. O cérebro é essa coisa sensível, complexa, cega e entregue que somos nós. E o mais cruel: responsabilizamos ele por tudo.
Se há ansiedade, vício, tristeza, desequilíbrio, apontamos para ele como se fosse um funcionário relapso. Esquecemos que ele só se alimenta do que deixamos entrar. E, mesmo assim, ele tenta... Oh, como ele tenta! É por isso que, no fundo, o cérebro não é só uma ilusão. Ele é também um milagre!
Um milagre feito de silêncio e disparos. De mistério e rotina. De impulsos que se repetem e ideias que ninguém sabe de onde vieram.
E assim, trancado no seu sótão escuro, o prisioneiro segue narrando o mundo.
O cérebro é um poema que a biologia escreveu sem querer...
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