por Mário Donato D’Angelo
Na Praça da Liberdade, em Petrópolis, e em outras praças que o Brasil esconde, havia sempre um homem que sem saber, fabricava eternidade de cinco por sete. Sentava-se à sombra das árvores com sua câmera de fole, um tripé carcomido e alguns retratos já revelados, expostos numa tábua inclinada, como troféus precários da dignidade alheia. Era o lambe-lambe. Seu nome de batismo? Nunca soube o nome daquele homem. Talvez se chamasse apenas “o fotógrafo”. Sei que tinha mãos manchadas de química e olhos treinados para a beleza que ninguém via. Era artista, artesão e confessor, mas ele era mesmo conhecido como lambe-lambe.
Vestia-se como um fotógrafo de outros tempos, mas nada nele era do tempo presente. A câmera parecia uma relíquia de museu, daquelas que exigem pano preto na cabeça, paciência nos gestos, olhos treinados para enxergar, pois o que via, através de sua lente, era uma imagem invertida, aprendera a elaborar a beleza do mundo de “cabeça pra baixo”.
O cliente se sentava num banco, às vezes torto, às vezes úmido, e atrás dele o lambe-lambe estendia uma lona pintada à mão: uma paisagem, uma igreja, uma cortina de estúdio de teatro barato. Tudo era pobre. Mas havia ali um desejo desesperado de beleza, aquela beleza que o mundo não vê.
Ali, naquele instante congelado, um casal se eternizava em noivos de papel. Um menino com roupa de domingo virava bacharel. Uma lavadeira se vestia de sonho. Não se tratava de vaidade, mas de vontade: vontade de entrar na vida. Na vida dos outros. Dos que tinham casas com estantes, molduras e retratos expostos na parede.
A mágica acontecia dentro de uma caixa de lata, improvisada, velha, onde o fotógrafo mergulhava o papel num líquido que parecia “mágoa”. A imagem surgia aos poucos, como quem hesita em nascer... E ele entregava, com certo cuidado de padre, aquele pedaço de história em preto e branco.
Mas havia um segundo milagre, para os que pudessem pagar um pouco mais.
O lambe-lambe oferecia:
“Se quiser, eu posso colorir pra você.”
Pintava a foto em casa, com tintas de origem incerta e arte improvisada. A blusa azul, o batom carmim, o laço da menina em tom rosa, o fundo verde-musgo. A foto, que antes era sombra, ganhava cor, ou o que a cor podia ser...
O cliente voltava uma semana depois, sorrindo, para buscar o retrato tingido. E aquele rosto, que antes parecia resignado ao preto e branco, agora carregava uma alegria silenciosa: havia cor na sua existência.
Ainda hoje, não raro, encontram-se essas fotos penduradas na parede de casas humildes, são verdadeiras relíquias, são cores que permanecem sobre um retrato que se apaga, sobre um fundo que vai ficando desbotado. Mesmo assim, ali estão. Resistindo.
Não era só imagem.
Era narrativa condensada: rostos cansados querendo fingir esperança, trajes de domingo sustentando promessas de ascensão. Era um recorte sonhador de gente que, por um breve segundo, acreditava estar sendo aceita pela cidade.
Muitos daqueles retratos foram parar em velhas cômodas de fórmica, dentro de envelopes com cheiro de mofo, entre papéis de batismo e lenços de luto. Amarelados. Esquecidos. Como seus donos. Mas houve um instante, que naquele banco, sob a lona improvisada e diante da lente de pano escuro, sentiram-se pertencentes. Achavam que, enfim, estavam sendo vistos. Fotografados. Documentados. Registrados não como peso, mas como parte.
O lambe-lambe era, talvez, o único a lhes oferecer esse tipo de eternidade, uma eternidade breve, meio esmaecida, colorida à mão, que podia não sobreviver ao tempo, mas que cabia na gaveta de uma memória sutil.
Hoje já não os vejo mais. Foram expulsos pela selfie, pelo celular, pela pressa... E aí, imagino, aquele homem, que o tempo apagou, assim como apagara suas fotos, que revelavam não só presenças, mas histórias... Dessas histórias, que poucos se deram ao trabalho de ouvir, uma espécie de adeus às esperanças simples.
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